
Joaquim Neto de Moura é o nome do juiz desembargador do Tribunal da Relação do Porto (TRP) que está debaixo de um coro de críticas desde que foi conhecida a fundamentação que utilizou num acórdão sobre um caso de crime de violência doméstica, datado de 11 de Outubro, em que foi juiz relator.
A fundamentação do acórdão (a cujo texto integral o POSTAL teve) que manteve a pena de prisão suspensa para os dois arguidos do processo não dá margem para quaisquer dúvidas de interpretação.
Trata-se de fundamentação sexista, machista, inconstitucional e que recorre a exemplos de pena de morte e de lapidação (morte por apedrejamento) de mulheres adúlteras, para justificar a diminuição da culpa dos arguidos na determinação da medida da pena a aplicar ao marido e ao amante (cúmplice) que exerceram violência sobre uma mulher.
O que diz o juiz no acórdão

Joaquim Neto de Moura diz no acórdão, para justificar a redução do grau de culpa dos arguidos, que
o crime de violência doméstica praticado pelos dois homens está, no caso concreto, “longe de ter a gravidade com que, geralmente, se apresentam os casos de maus tratos no quadro da violência doméstica”, uma vez que, a mulher vítima mantinha uma “relação adúltera” e “o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem”.
O magistrado diminui a culpa dos agressores, que contra a mulher praticaram entre outros os crimes de violência doméstica e de sequestro, dizendo ainda que “sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte”.
Para a redução do grau da culpa o magistrado recorre ainda a uma citação de um texto religioso dizendo que “na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte” e acrescenta a fundamentação com uma referência ao Código Penal de 1886, indicando que “ainda não foi há muito tempo que a lei penal (Código Penal de 1886, artigo 372º) punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério, nesse acto a matasse”.

Para culminar o momento de triste argumentação o magistrado refere que “com estas referências pretende-se, apenas, acentuar que o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher”.
O que significam as fundamentações utilizadas para a justiça portuguesa

Com a fundamentação utilizada o juiz desembargador deita por terra anos de evolução da sociedade portuguesa e da Justiça em Portugal ao mesmo tempo que mostra quão retrógrada pode ser a mentalidade quanto à auto-determinação das mulheres e quanto aos seus direitos enquanto seres humanos.
O magistrado considera que a violência praticada contra a mulher e esposa pelo marido e pelo amante tem menor gravidade porque aquela era uma “mulher adúltera”, pondo em causa a liberdade da mesma auto-determinar o seu comportamento na constância do casamento.
No mesmo raciocínio o desembargador valora o adultério praticado pela esposa de forma a considera-lo especialmente grave, sem em momento algum – antes pelo contrário – considerar que o comportamento adúltero da esposa é exactamente igual ao comportamento adúltero praticado pelo marido. Assim o magistrado viola o princípio da igualdade previsto na Constituição e adopta uma atitude sexista e machista que, a ter como sua, nunca poderia deixar que lhe toldasse o juízo que faz enquanto administrador da Justiça num país onde a igualdade entre sexos tem cobertura legal.

As pérolas da fundamentação a que o juiz recorre continuam com o magistrado a referir, como se de um exemplo válido se tratasse, que há sociades em que a mulher adúltera é alvo de lapidação, assim aceitando como argumento valorativo a pena de morte por apedrejamento praticada em alguns países do mundo em caso de adultério.
E reforça a posição afirmando que a pena de morte tem acolhimento religioso na bíblia, conseguindo fundamentar, de forma aparentemente natural e sem qualquer pudor, uma sentença proferida por um tribunal de um país laico com um texto religioso.
Desta forma o juiz consegue dois momentos de rara gravidade na justiça portuguesa, por um lado admite o recurso à religião para análise de um caso em tribunal numa República laica, pondo em causa a separação entre o Estado e as religiões e, por outro, admite a pena de morte e, particularmente, a pena de morte por apedrejamento como recursos de um juízo valorativo de um representante da Justiça num país que não admite tal pena no seu ordenamento jurídico.

Joaquim Neto de Moura soma assim duas violações à Constituição da República à admissão na construção da sua argumentação da pena de morte, exactamente no ano em que Portugal, o primeiro Estado soberano da Europa a abolir a pena de morte, celebra 150 anos sobre o fim desta pena no quadro legal do país (1867-2017).
Já o recurso à citação do Código Penal de 1886, deita por terra a evolução jurídica portuguesa de mais de um século e faz tábua rasa do tanto que os portugueses, em particular as mulheres, lutaram ao longo destes mais de 100 anos para verem a Justiça e a lei evoluírem de modo a acomodarem a evolução da sociedade e em particular os direitos das mulheres.
Finalmente o desembargador faz da sua convicção de que são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras um facto que é válido para servir de base a um juízo de valor, como se tal convicção pessoal fosse geral e notória e como se tal pudesse ser determinante para a definição de uma sentença.
Uma decisão histórica pelos piores motivos

Não se pode dizer que a decisão vertida no acórdão do início deste mês seja caso único na Justiça portuguesa – antes pelo contrário da mão deste mesmo magistrado se sabe agora terem saído decisões cravejadas de argumentos igualmente condenáveis – mas esta decisão constitui pela notoriedade atingida com o conhecimento generalizado da mesma um caso histórico de especial gravidade.
Desde logo porque ao ser em princípio irrecorrível para o supremo, já que o acórdão confirma uma condenação em pena inferior a cinco anos de prisão, constituirá quando transite em julgado (quando uma decisão se torna efectivamente irrecorrível) jurisprudência de um tribunal superior, podendo ser utilizada como argumento noutros casos futuros julgados em Portugal.
Em segundo lugar porque mais do que a decisão do juiz Joaquim Neto de Moura, mais do que ser a expressão da sua posição é uma decisão que vincula um órgão de soberania do Estado Português, os tribunais no seu conjunto, e o Tribunal da Relação do Porto em particular.
Pelo menos mais um juiz votou a favor do acórdão polémico

A somar para a gravidade da decisão inaceitável da Justiça está ainda o facto do colectivo de juízes que analisou o caso ter, por votação, aprovado o acórdão pelo menos por maioria de dois dos três juízes envolvidos.
Da votação participaram, além do relator Neto de Moura, a juíza adjunta Maria Luísa Abrantes e, em princípio e de acordo com a lei de processo penal, o juiz presidente da 1ª Secção Criminal do TRP, Francisco Marcolino. Desconhece-se até ao momento se terá havido algum voto de vencido no acórdão, isto é, se algum dos juízes terá votado contra o mesmo. Certo é que pelo menos mais um magistrado, além de Joaquim Neto de Moura, votou a favor do teor do acórdão e assim se satisfez, sem mais, com aquilo que o mesmo refere.
O que esteve na origem do acórdão

O acórdão da Relação do Porto foi proferido a 11 de Outubro e refere-se a factos praticados em 2014 e julgados em primeira instância pelo Tribunal de Felgueiras.
Na primeira sentença sobre o caso, a decisão condenava os dois arguidos, o marido da vítima e o seu amante, que actuou como cúmplice, de forma diferente.
Ao marido da vítima foi aplicada e confirmada pelo TRP a pena de prisão de um ano e três meses suspensa na sua execução e a pena de proibição de qualquer contacto ou aproximação da vítima pelo crime de violência doméstica. O marido foi ainda condenado pelo crime de detenção de arma proibida a uma pena de multa.
Já o amante e cúmplice foi condenado a um ano de prisão com pena suspensa e à proibição de qualquer contacto ou aproximação da vítima pelo crime de violência doméstica e a várias penas de multa pelos crimes de perturbação da vida privada, injúrias, ofensa á integridade física simples e sequestro.
Na base da condenação estiveram o sequestro, as agressões com uma moca cravejada de pioneses e os demais crimes levadas a cabo pelo marido e pelo amante contra a mulher.
O Ministério Público de Felgueiras não se conformou com a sentença dada pelo tribunal de primeira instância e recorreu para o TRP.
As ondas de choque provocadas pelo acórdão da Relação do Porto

As ondas de choque que se propagaram rapidamente na opinião pública tiveram maior expressão nas redes sociais, mas não passaram indiferentes aos fóruns de profissionais ligados à área da Justiça, advogados e juízes existentes na internet.
O acórdão que inicialmente causou perplexidade ao ser conhecido, nomeadamente nos meios ligados à área da justiça, rapidamente se espalhou pelas redes sociais e num ápice a reacção das pessoas passou a ser de indignação com comentários ferozes contra o teor machista e retrógrado da sentença.
Termos como “indignação”, “revolta”, “inadmissível” ou “vergonhoso” são apenas exemplos dos muitos comentários que o acórdão gerou e se nos fóruns privados ligados à Justiça a preplexidade e a crítica face ao teor da fundamentação do acordão é total mas comedida na maioria dos casos, fora destes meios mais técnicos e em que as palavras são mais medidas, os internautas não se cansam nas redes sociais, nomeadamente no facebook, de condenar a decisão de forma bem menos comedida.
O coro de protestos tem um alvo principal, o desembargador Joaquim de Neto Moura, mas o próprio TRP e a Justiça em geral saem fortemente chamuscados deste episódio onde muita ainda estará por acontecer.
A comunicação social tem dado uma importante cobertura ao caso em Portugal e mesmo no estrangeiro, quer na televisão, quer na imprensa escrita, ao mesmo tempo que várias instituições como a Amnistia Internacional Portugal e associações ligadas à defesa dos direitos das mulheres não parecem ter qualquer intenção de deixar passar em branco a situação.
Enquanto por exemplo a UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta, considera “inadmissível” o teor do acórdão, os activistas, ‘Parar o Machismo, construir a igualdade’ marcaram para amanhã um protesto em frente à antiga Cadeia da Relação, pelas 18 horas, para protestar contra a sentença judicial.
Já Amnistia Internacional Portugal diz ver “com profunda preocupação” os fundamentos utilizados pelo magistrado e a APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima afirma o seu “mais veemente repúdio face ao acórdão”, enquanto a Ordem dos Advogados, em declarações do bastonário Guilherme de Figueiredo à TSF, diz que a instituição entende que “é grave” o que se passa.

Apenas alguns exemplos do que se diz pelo país sobre a situação enquanto o Conselho Superior da Magistratura (CSM) se limita em comunicado a sublinhar a independência dos juízes e a sua única subordinação à Constituição e à lei, e a fazer saber que o CSM não tem poder em questões jurisdicionais. Ao mesmo tempo, refere o CSM, “nem todas as proclamações arcaicas, inadequadas ou infelizes constantes de sentenças assumem relevância disciplinar, cabendo ao Conselho Plenário pronunciar-se sobre tal matéria” e diz que “ nos termos legais, os juízes em funções nos tribunais superiores não se encontram sujeitos a inspecções classificativas ordinárias, embora a promoção à Relação e o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça tenha em consideração todos os elementos relevantes que se encontrem disponíveis no Conselho Superior da Magistratura”.
A parca intervenção inicial do órgão de tutela dos juízes face à gravidade da situação e ao seu impacto a nível da sociedade foi entretanto alterada com o CSM a decidir abrir um inquérito sobre o caso.