Natural de Moncarapacho e com uma carreira docente de 25 anos na Escola Secundária Dr. Francisco Fernandes Lopes, em Olhão, Idalécio Soares aprofunda na sua mais recente obra a evolução política do Algarve no final da Monarquia e primeiros anos da República investiga.
Autor de diversos estudos sobre a história regional e colaborador do POSTAL, o historiador destaca a combatividade dos republicanos algarvios e reflete sobre os desafios contemporâneos à luz dos valores republicanos, alertando para a propagação de desinformação como um novo fator de “obscurantismo”. O autor prepara já novos projetos sobre o 25 de Abril no Algarve e outras temáticas históricas regionais.
P – Qual foi a principal motivação para escrever este livro sobre a transição do Algarve da Monarquia para a República?
R – Além de ter tido um avô republicano, que não cheguei a conhecer, o que a nível do inconsciente pode ter contribuído para aguçar a minha curiosidade sobre o assunto – facto que menciono no meu livro – a razão principal foi seguramente a visão negativa, de caos e desordem, que, da República, nos era transmitida na escola, nos tempos da ditadura, e que, ao contrário do que era o objetivo dos seus próceres, muito cedo, despertou em mim o desejo de querer conhecer melhor este período da História, desde logo a nível do Algarve. Como qualquer outro período da História, o da República não foi um mar de rosas nem tão pouco o inferno dantesco da propaganda do Estado Novo.

P – Durante a pesquisa, houve algum facto ou personagem que o surpreendeu particularmente?
R – Foi, inquestionavelmente, a combatividade e a determinação com que, ao longo de mais de tinta anos, várias gerações de republicanos lutaram esforçadamente pela implantação da República e pelo triunfo dos seus ideais. Uma luta tenaz que seria, anos mais tarde, retomada com igual vigor por muitos outros republicanos, desta vez contra a Ditadura Militar que, em 1926, pôs fim ao regime republicano (assunto que já tinha tratado no meu primeiro livro, Vítimas da Ditadura no Algarve).
P – Como vê a relevância dos valores republicanos hoje à luz da realidade que descreve no livro?
R – Portugal, e com ele o nosso Algarve, é hoje um país muito diferente, com problemas necessariamente diferentes daqueles que enfrentava nessa altura. As cores da bandeira e o hino republicanos, que, na altura, eram um fator de divisão entre os portugueses, são hoje assumidos pela esmagadora maioria da população como símbolos nacionais, nomeadamente nas grandes competições desportivas. O analfabetismo, o grande problema da altura, foi praticamente erradicado. Ainda assim, ao contrário do que na altura era convicção dos republicanos, tal não pôs fim ao obscurantismo em si. Pelo contrário, este não só continua, sob novas formas, como tende a aumentar perigosamente no país e no mundo. Antes fruto da falta de informação e de acesso à escola, o obscurantismo é hoje, paradoxalmente, resultado do excesso de notícias e da falta de sentido crítico com que as recebemos. Propaladas por Inteligência Artificial, as fake news ou as teorias da conspiração, que, como cogumelos, proliferam nas redes sociais, são apenas alguns dos veículos utilizados por este novo obscurantismo, que, aos poucos, vai corroendo os valores republicanos e democráticos das nossas sociedades. Sob este aspeto, a luta pelos valores republicanos continua ainda hoje a ser não só atual como pertinente.
P – Considera que as dinâmicas políticas locais no Algarve tiveram uma influência única no processo republicano em comparação com outras regiões do país?
R – De um modo geral, o republicanismo foi, desde o seu início, mais forte no sul do país, nomeadamente no Algarve, onde a influência da Igreja era menor e havia uma tradição de maior abertura às novas ideias. Não por acaso, cidades e vilas com economias mais dinâmicas e abertas, ligadas ao mar ou às novas indústrias das conservas ou da cortiça, como Lagos, Olhão, Tavira ou Silves, foram aquelas onde, desde muito cedo, surgiram os primeiros centros republicanos e onde, ao longo do tempo, o republicanismo se revelou mais pujante. De grande importância foi também o contributo dado à causa da República, quer antes, quer depois da sua implantação, por destacadas personalidades algarvias ou à altura radicadas no Algarve. Menciono, a nível regional, entre outros: Libânio Gomes, pai do escritor e futuro Presidente Manuel Teixeira Gomes, em Portimão; Bernardo de Passos ou o herói da Rotunda Rosa Beatriz, em S. Brás; Gustavo Cabrita, Estevão Vasconcelos ou José Maria Pádua, em Olhão; Roque Féria, Jacques Pessoa ou Silvestre Falcão, em Tavira. Destaco, pela sua inquestionável dimensão nacional: o portimonense Manuel Teixeira Gomes, o louletano José Mendes Cabeçadas e o olhanense José Carlos da Maia.
P – Qual foi o maior desafio na escrita deste livro – a recolha de fontes, a organização cronológica, ou a interpretação dos acontecimentos?
R – Desde há alguns anos existe ao dispor dos investigadores e do público em geral uma plataforma on line – a Hemeroteca Digital do Algarve – que nos permite consultar a partir das nossas casas, com toda a comodidade, os jornais que, ao longo do tempo, se publicaram na província. Quando, antes da pandemia, comecei a investigação para este livro, essa plataforma ainda não tinha sido criada. Isso obrigou-me a ter de fazer sucessivas deslocações a Lisboa, à Biblioteca Nacional, não só para consultar os jornais nacionais, que só aí se encontram, como também os algarvios. A pandemia, felizmente ocorrida quando a parte substancial dessas consultas já tinha sido feita, obrigou-me, por sua vez, a algumas adaptações no plano de trabalho, nomeadamente, passar mais cedo à fase da escrita, prescindido de algumas das consultas, de carácter mais pontual, inicialmente previstas, que, desta forma, não chegaram a ser feitas. Penso, no entanto, que isso não afetou, no essencial, o trabalho final.
P – Planeia dar continuidade a este projeto com futuras obras sobre o Algarve noutras épocas históricas?
R – Tenho presentemente em mãos um projeto sobre o 25 de Abril no Algarve, do qual tenho estado a publicar, desde o ano passado, algumas partes no Postal do Algarve, sob a forma de cadernos. Colaborei também recentemente com um estudo sobre os 100 anos da vitória do Olhanense no Campeonato de Portugal numa revista comemorativa desta efeméride, que este clube vai publicar muito em breve. Tenho, além disso, em estado já adiantado, dois outros estudos: um sobre os loucos anos 1920 em Olhão, outro sobre o anarco-sindicalismo no Algarve no tempo da República. Enfim, projetos não faltam. Haja, para tanto, vida e saúde!
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