Ao certo, não se conhecem ainda bem todos os porquês da derrocada da coabitação entre a democracia liberal e o capitalismo, embora Martin Wolf se tenha esforçado por esclarecê-los, na sua obra “The Crisis of Democratic Capitalism”.
Desconhece-se, ainda, o que poderá ser feito em sua defesa para inverter essa dinâmica, sendo certo que é possível apregoar à inutilidade dos quatro ventos, que o capitalismo democrático ou a democracia de mercado, com as suas políticas de alocação de recursos por direitos sociais ainda é, com todos os seus defeitos, o melhor sistema para o crescimento económico, a educação e a qualidade de vida, em síntese, para o desenvolvimento humano.
Convirá que, estando a democracia à beira da derrocada, pululam às portas do poder partidos racistas e xenófobos, que já as atravessaram, de par em par, em muitos países da União Europeia. Parece inegável que a democracia liberal está a viver uma profunda crise com os avanços do autoritarismo, da desinformação, a polarização política e a desconfiança nas suas instituições.
Sem profetismos, Vicente Valentim clarificou, há bem pouco, em “O Fim da Vergonha” – Como a direita radical se normalizou, bem como o aumento do sucesso eleitoral dos partidos da direita radical e o modo como se tornaram atores políticos centrais na maior parte dos países europeus.
Hoje, meio mundo aparenta disponibilidade para aceitar a violação de todos os princípios escritos e não escritos, de uma Constituição destinada a proteger as liberdades individuais do conjunto dos cidadãos.
Parece evidente que se vive uma era de progressiva “desconsolidação” democrática, em que boa parte dos cidadãos dos países ricos manifestam uma evidente «desconexão» com os valores democráticos, numa manifestação patenteada pelo distanciamento e pela indiferença com a democracia.
Os mais jovens, em particular, mostram-se cada vez menos apegados a essa forma de governo político e mais tentados por diversos lances de radicalismo político.
Se a eleição dos governantes ainda conserva algum valor, como um dos componentes essenciais da democracia liberal, é inegável que, com a “desconsolidação” do engajamento democrático dos indivíduos e a prática dos direitos políticos, tais aspetos já não são percebidos como elementos essenciais da vida democrática.
Acresce, ainda, a preocupação com o facto de o desinteresse que inspiram tarda em ser compensado pela atração de novas formas, convencionais ou não, de participação cívica.
Essa preocupação aumenta tanto quanto parece prevalecer um profundo autismo nos partidos clássicos, embrulhado em interesses particulares, persistindo em inexplicáveis arranjinhos paroquiais, alheios aos principais desafios com que o mundo hoje se defronta, nomeadamente a guerra, a evolução tecnológica, a integração europeia, a evolução da economia, a democracia, a energia, o clima, os meios de informação e a questão militar da defesa. Tudo isto, sem que se deixe de observar o extremar de preocupações básicas como a carência de habitação, o definhamento do valor da empregabilidade e da saúde e os exigentes esforços ciclópicos que uma imperativa mudança política solucionadora supõe. Não se desconhece que se trata do leito de um caldo político efervescente, em que o recurso a soluções autoritárias para resolver os problemas mais prementes não gera mais uma rejeição tão sistemática como a que se verificava há anos atrás.
A inserção dos indivíduos nos partidos clássicos parece ter lugar como se fossem a bordo do Titanic. Estão contaminados por um desconforto que se multiplica entre os mais jovens e mais vulneráveis, em razão do seu futuro, bem como os indivíduos encontrados sozinhos e desacompanhados, sem que os partidos estejam à altura de reivindicar os seus problemas para si, no rescaldo caótico dos seus dramas humanos. Eles tornaram-se símbolos de tragédia e de pouca esperança de encetarem uma vida boa no seu país.
Os partidos deixaram de ser, entre outros aspetos, escolas cívicas, de militância, para se transformar em meras máquinas de reprodução de poderes habitados por elites políticas que, a troco da política que deveria servir as pessoas, remeteram os cidadãos para o esquecimento, tudo fazendo para manter os privilégios de que se foram apropriando.
Daí, os esboços da avidez de censura a todo o discurso contraditório, preferindo taxar de populistas quem quer que se posicione de modo diverso, a terem que empreender um cunho regenerador à sua missão.
Talvez sejam estes os principais responsáveis pela abstenção, pelo desinteresse crónico pela política e mesmo pela crise da democracia.
É um dado inequívoco que o foco da praxis política dos maiores partidos portugueses reside na sua própria reprodução na esfera do poder, no controlo do sistema eleitoral, impeditivo da apresentação de alternativas, na partilha de negócios estatais com os grupos económicos de que são meros dispositivos instrumentais, no aconchego das suas carteiras de clientes, na garantia de empregabilidade dos milhares de desprotegidos, dos militantes partidários e suas famílias.
Seria de esperar que quem governa fosse capaz de perceber o que se passa em torno da vida dos seus concidadãos, que identificasse as causas dos problemas que eles enfrentam, os recursos que o Estado possui e as condicionantes para os utilizar, aplicando as melhores políticas públicas, isentas de clientelismo político. Seria desejável que as forças do Mercado e da Sociedade Civil se sentissem mobilizadas, como catalisadoras de uma política esclarecida de desenvolvimento nacional que contribuísse para que os seus concidadãos vivessem melhor. Para quando? Vamos lá saber.
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