Se a rivalidade e a controvérsia entre ensino público e privado se mantêm há já muitos anos, olhar diferente vai para os desarrazoados rankings, que teimam em enviesamentos de análise, colocando, no mesmo saco, um ensino seletivo, que se permite ter em conta objetivos lucrativos, explícitos na seleção de um perfil de alunos provenientes de famílias de nível socioeconómico elevado, e uma escola socialmente inclusiva, instituída como elevador social.
Numa inexorável e fatídica recorrência, os colégios privados figuram no topo e as escolas públicas, de meios socioeconómicos desfavorecidos, fazem de carro-vassoura.
Será que o facto de a escola pública ter um corpo docente instável, somado a uma quantidade elevada de alunos, por turma, não compromete a segurança ou o funcionamento do ambiente escolar?
Não se compreende que interesses ocultos haverá nesta recorrente e distorcida comparação entre escolas públicas e privadas, quando elas constituem o crivo da sociedade em que estão implantadas, isto é, são dotadas de uma população heterogénea, oriunda de grupos sociais distintos.
Como abertura de parêntesis, importa que se patenteie um dado insofismável: no nosso país, cerca de 87% dos alunos cursam o ensino público – ensino básico, secundário e universitário – e apenas 13 % frequentam o ensino privado e o ensino privado dependente do Estado, segundo dados recentes do Instituto Nacional de Estatística.
As diferenças na base destes dois modelos de ensino são várias, a montante e a jusante. A montante, o nosso olhar dirige-se à condição privilegiada que preside á possibilidade de escolha financeira dos grupos sociais que têm a opção de ser detentores de um ensino mercantil e, a jusante, um conjunto de elementos significativos, quais sejam: os horários de trabalho dos encarregados de educação, o estatuto social, a procura de uma maior exigência competitiva no estudo e no apoio didático ao aluno, a sua bolha de segurança e a assiduidade dos professores.
Por certo que os alunos, no ensino privado, têm diferente acesso à música, à dança, à catequese, aos escoteiros, ou seja, a todo um conjunto de enriquecedoras escolhas extracurriculares, em que o colégio substitui o encarregado de educação.
Os espaços em que os alunos entram no colégio, saindo já com os trabalhos feitos, evidenciam, como não poderá deixar de ser, mais equipamentos, instalações e conforto que a escola pública. Ninguém gosta de ter aulas em salas sem aquecimento e menos andar de balde para apanhar as gotas da chuva que, do teto caem no recipiente, em irritantes sonoridades. Exagero o meu, ou talvez não, conquanto existirão, por certo, honrosas exceções.
Será que o facto de a escola pública ter um corpo docente instável, somado a uma quantidade elevada de alunos, por turma, não compromete a segurança ou o funcionamento do ambiente escolar? A evidência de a escola pública ter muitos alunos não fará com que a sua quantidade ao ser elevada, produza os inerentes malefícios no aproveitamento escolar dos mesmos?
Por seu turno, quer encarregados de educação, quer professores, também se dividem quanto à natureza das instituições escolares. Para os primeiros, perece pacífico o entendimento de que a escola pública confere uma sociabilidade diferente, vertida numa maior capacidade de os alunos identificarem quais os grupos de pessoas com que devem ou não conviver. Parece ser diferente a sua aprendizagem na valorização das suas conquistas. Se, no público, aprendem que se levarem uma roupa de marca, podem ser objeto de assalto, no privado acham-se abafados pela autoridade dos colégios que lhe tolhe o salutar desejo de autonomia. Já os professores preferem, de um modo geral, lecionar na escola pública, conquanto o ensino privado reserva-lhes uma maior falta da aludida autonomia na sala de aula e um copioso conjunto de atividades presenciais aos fins de semana.
Num campo, também ele primordial, o da capacidade económica dos pais, bem que a opção da maioria significativa dos miúdos não os tem, que possam dar-se ao luxo de efetuar uma escolha que os encargos colegiais comportam. Já não aprofundando a questão de inclusão sociocultural de alunos filhos de imigrados, detentores de dificuldades linguísticas acrescidas, não são raros os miúdos a quem a ação social escolar financia um universo significativo de refeições, por conta da insolvência económica dos pais. Como desvantagens preocupantes, em termos formativos, vinga, ademais, a perceção pública negativa de que as dificuldades burocráticas criadas aos professores na escola “oficial” são geradoras de facilitismo na progressão académica dos alunos.
Bastará que pensemos nas experiências típicas de alunos que transitam de tipos de ensino que, não raro, notam a ajuda que lhes é dada por parte dos professores na escola privada, desde tópicos para testes, ao andar sempre “em cima” deles para que estudem, facultando-lhes todas as ferramentas necessárias para o sucesso.
Confessaria uma outra aluna de referência do privado que, não tendo memória de atos relativos a uma tentativa de superioridade por parte dos elementos das turmas dos “endinheirados”, todos sabiam que as oportunidades não eram as mesmas. Tinham os professores mais dedicados, acesso a salas de estudo, enfim, a um apoio maior.
No tocante à disciplina, as perceções divergem: enquanto que, na pública, ecoa alguma dissonância face a ocasionais práticas de bullying, no ensino privado, a indisciplina não tem a mesma ocorrência e visibilidade, talvez porque ao terem lugar episódios que suscitem ingerência nas aulas, os alunos são convidados a sair da instituição.
Claro que, quando mudam para a escola pública, sentem um choque de realidade inicial, porque o seu estudo passa a ser deixado ao seu critério, à exceção de professores mais zelosos, ou mais qualificados do ponto de vista pedagógico, aspetos que não têm necessária ligação à propalada profissionalização.
O desejável seria constatar que, desta dialética escolar, pudesse resultar o esbatimento de um problema significativo – o de que um universo expressivo dos pais pudesse ter, para os seus filhos, a opção que não tem. Mas como isto do dever kantiano não é capaz de se bater de frente com a subida dos juros dos empréstimos à habitação, ou com a subida dos preços da alimentação, fica de pé a indagação de quem é que pode subtrair os seus filhos às escolas públicas?
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