Uma disputa prolongada entre duas vizinhas num prédio residencial de Nova Iorque acabou por resultar num acordo de 750 mil dólares, cerca de 682.000 euros ao câmbio oficial publicado na altura do caso, depois de as autoridades federais terem avançado com um processo por alegada discriminação relacionada com animais, neste caso papagaios, de apoio emocional. O caso, que começou com queixas de ruído provocadas por papagaios, terminou com um acordo judicial num tribunal federal, com consequências financeiras pesadas e uma amizade irremediavelmente quebrada entre vizinhas.
De acordo com o Noticias Trabajo, site espanhol especializado em assuntos legais e laborais, o conflito envolveu duas mulheres que viviam porta com porta num edifício em Manhattan e que mantiveram uma relação de amizade durante vários anos.
A convivência começou a deteriorar-se quando uma delas passou a ter três papagaios em casa, animais que, segundo a própria, eram essenciais para a sua estabilidade emocional e funcionavam como animais de apoio emocional.
Segundo a mesma fonte, os problemas intensificaram-se em 2015, quando a vizinha apresentou várias queixas junto da administração do edifício e das autoridades municipais, alegando que os gritos das aves eram constantes e perturbavam o seu descanso, referindo que o barulho ocorria “durante o dia, à noite e até de madrugada”.
O Departamento de Proteção Ambiental de Nova Iorque (DEP) chegou a deslocar-se ao local em várias ocasiões na sequência dessas queixas e, de acordo com informação citada pelas autoridades federais, não emitiu qualquer auto/notificação por infração de ruído. Também é referido que não existiu uma avaliação objetiva de decibéis por iniciativa do prédio para sustentar as acusações de ruído excessivo.
Quando a questão chegou à administração do edifício
Apesar de não terem sido emitidas infrações por ruído, a administração do prédio avançou, em 2016, com um processo para expulsar uma das vizinhas, a moradora que tinha os papagaios, alegando violação das regras de convivência.
A proprietária defendeu-se, afirmando que os animais faziam parte do seu tratamento de saúde mental e que a tentativa de despejo violava o seu direito a uma acomodação razoável enquanto pessoa com deficiência, ao abrigo da Fair Housing Act.
De acordo com o Noticias Trabajo, a situação agravou-se quando a administração do edifício recusou um comprador para o apartamento por 467.500 dólares, o que as autoridades interpretaram como uma forma adicional de retaliação.
Processo judicial e acordo
Em maio de 2018, a moradora apresentou uma queixa junto do Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano dos Estados Unidos (HUD), invocando a violação da Fair Housing Act, a lei federal que protege pessoas com deficiência contra discriminação no acesso à habitação.
Após investigação, o HUD concluiu existir “causa provável” para considerar que poderiam ter ocorrido práticas discriminatórias e de retaliação. O caso acabou por seguir para tribunal federal e terminou com um acordo judicial anunciado a 16 de agosto de 2024.
O acordo fixou um total de 750.000 dólares, cerca de 682.000 euros ao câmbio oficial publicado para 16/08/2024, incluindo 165.000 dólares por danos e 585.000 dólares destinados à compra das ações associadas ao apartamento, compensando a proprietária pela perda da habitação.
O significado do caso
Segundo comunicado das autoridades, este foi descrito como o maior valor alguma vez obtido pelo Departamento de Justiça dos EUA num caso em que uma pessoa com deficiência viu negado o direito a ter um animal de assistência/apoio. As autoridades sublinharam que o caso serve de alerta para administrações de prédios e senhorios, que devem rever políticas internas para garantir o cumprimento da lei federal.
Após abandonar o edifício, uma das vizinhas mudou-se para uma zona mais rural no norte do estado de Nova Iorque, onde vive com os seus papagaios. Em declarações citadas pelo Noticias Trabajo, referiu que vive com doença mental e que as aves foram determinantes para a sua estabilidade e sobrevivência.
E em Portugal?
Em Portugal, um conflito desta natureza seria analisado à luz de vários regimes legais, desde logo o Código Civil, o regime da propriedade horizontal e a legislação aplicável ao ruído. No plano do condomínio, o artigo 1422.º do Código Civil estabelece limitações ao exercício dos direitos do condómino e prevê, entre outros pontos, a possibilidade de existirem atos ou atividades proibidos no título constitutivo (ou por acordo de todos os condóminos), o que pode ter relevância quando estão em causa regras internas de convivência.
Quanto ao ruído, a norma mais direta no Código Civil é o artigo 1346.º, que permite ao proprietário opor-se à produção de ruídos (e factos semelhantes) provenientes de prédio vizinho sempre que esses ruídos causem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou excedam a utilização normal do prédio de onde emanam.
Paralelamente, o Regulamento Geral do Ruído (Decreto‑Lei n.º 9/2007) prevê mecanismos de atuação em situações de “ruído de vizinhança”, com intervenção das autoridades policiais, e, quando esteja em causa a verificação de conformidade com critérios técnicos e valores limite, admite que essa avaliação possa ser feita através de medições acústicas (ou por consulta de mapas de ruído), conforme o enquadramento aplicável.
No entanto, ao contrário do que sucede nos Estados Unidos, não existe em Portugal um estatuto legal autónomo para os chamados “animais de apoio emocional” com efeitos equivalentes no acesso e permanência na habitação.
O regime que a lei prevê de forma expressa, no plano de direitos de acesso associados à deficiência, é o das pessoas com deficiência acompanhadas de cães de assistência, consagrado no Decreto‑Lei n.º 74/2007.
Ainda assim, qualquer conflito exigiria ponderação entre os direitos de terceiros à tranquilidade e ao uso normal da habitação e os direitos e necessidades da pessoa em causa, podendo, se estiver em causa discriminação por deficiência, ser convocada a Lei n.º 46/2006, sem prejuízo dos mecanismos civis de tutela aplicáveis.
















