Lisboa despediu-se de Pedro Sobral, administrador do grupo editorial LeYa e presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), que faleceu este sábado tragicamente aos 51 anos, na sequência de um atropelamento na Avenida da Índia.
A notícia foi confirmada pela editora LeYa, que, em comunicado, lamentou a perda daquele que descreveu como um homem “profundamente convicto do poder dos livros” e defensor incondicional da liberdade de edição. Com um percurso profissional ligado à área editorial, Pedro Sobral distinguiu-se, também, pela sua paixão por correr de madrugada pelas ruas de Lisboa e por captar com a câmara fotográfica as primeiras luzes da cidade.
Atropelamento mortal na Avenida da Índia
Na manhã em que tudo aconteceu, uma viatura ligeira avançou pela Avenida da Índia, na zona de Belém, e acabou por atingir o ciclista que ali circulava. O condutor pôs-se em fuga, apresentando-se mais tarde às autoridades, acompanhado de um advogado. A notícia de um atropelamento mortal, avançada por fonte da PSP, foi rapidamente confirmada pelo grupo LeYa, que publicou um comunicado oficial: “Foi com profunda e pesada tristeza que a LeYa recebeu, esta manhã, a notícia da trágica morte de Pedro Sobral, administrador das Edições Gerais”.
A editora descreveu, no mesmo texto, a importância que o seu trabalho teve não apenas para quem trabalhou de perto com ele, mas para todo o setor livreiro e editorial em Portugal. “O Pedro acreditava profundamente no poder dos livros e na liberdade da edição, valores com que ajudou a construir a LeYa”, afirmou Ana Rita Bessa, presidente-executiva do grupo.
Percurso profissional e paixão pelos livros
Pedro Sobral, licenciado em Economia e em Ciência Política pela Universidade Católica de Lisboa, completou ainda o Programa de Gestão Geral na Harvard Business School, nos Estados Unidos. Iniciou a carreira profissional na área financeira e de consultoria, tendo sido nomeado diretor de Marketing e Vendas no Grupo Almedina em 2004. Em 2008, entrou no Grupo LeYa, onde desempenhou diversas funções, desde diretor de Marketing e Conteúdo Digital até coordenador da Divisão Editorial. Eventualmente, assumiu o cargo de administrador das Edições Gerais do grupo.
Em 2021, foi eleito presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), depois de ter sido vice-presidente durante três anos. Nesta função, defendeu causas fundamentais para o setor livreiro, como o reforço do financiamento de bibliotecas públicas e a necessidade de tornar o livro acessível a todos. Nas suas intervenções, manifestava frequentemente a convicção de que o acesso à leitura deve ser encarado como um direito essencial, não devendo ser visto como um luxo ou um bem supérfluo.
Uma entrevista que refletiu a sua visão
Em 2023, o jornal digital de Lisboa “Mensagem” publicou uma entrevista realizada por Inês Leote, que descreveu um Pedro Sobral madrugador, dedicado a percorrer vários quilómetros de corrida a cada dia, entre Campo de Ourique, o Parque Eduardo VII, a zona ribeirinha e outros locais emblemáticos da capital. O pretexto para a conversa tinha sido a 93.ª edição da Feira do Livro de Lisboa, organizada pela APEL, de que Pedro Sobral era presidente.
Nessa entrevista, revelou o hábito de começar os dias por volta das 6h20 da manhã, correndo cerca de dez quilómetros diários. Além de correr, fazia sempre questão de fotografar as paisagens que encontrava, aproveitando as ruas vazias e a iluminação ainda ténue do nascer do sol. “Costumo correr muito junto ao rio – passo pelo Cais do Sodré, Alcântara, Belém, e uma das coisas que mais observo é aquele limbo: entre a Lisboa que está a ir para a cama e a Lisboa que está a acordar – mães que saem de casa cedíssimo, com a criança às costas ainda de pijama. Muitos políticos deviam sentar-se a beber um café a essa hora e perceber o que é o país real”, disse então, numa das passagens que ficou marcada.
Foi, pois, esse espírito de observação e gosto por documentar a cidade acordada que Pedro Sobral transmitiu a muitos colegas e amigos, mostrando uma faceta que aliava a paixão pelos livros à vida nas ruas. Na mesma conversa, defendeu o crescimento das plataformas digitais para a leitura, chamando a atenção para o áudio-livro e para os podcasts narrativos, que, na sua ótica, poderiam atrair novos públicos, sobretudo os mais jovens. “Algumas pessoas começam pelos podcasts e depois vão migrando para os áudio-livros. Mas também vemos uma conversão significativa para o formato impresso”, explicou.
A visão sobre o mercado livreiro e a Feira do Livro
Ainda nessa entrevista, Pedro Sobral referiu que o mercado editorial em Portugal vivia um momento de crescimento, com maior adesão por parte de jovens que, durante o confinamento, terão voltado a interessar-se pelas leituras em papel. Falou no fenómeno do TikTok, do #BookTok e das “Torres de Livros”, que chegavam a mobilizar uma faixa etária antes distante do objeto livro.
O então presidente da APEL considerava que, para incentivar a formação de novos leitores, a escola teria de adaptar-se e valorizar mais o contacto com o livro por prazer, para lá das leituras obrigatórias. Deu como exemplo o método de apoio estatal usado na Noruega, onde o governo adquiriu grandes quantidades de livros infantis e juvenis para abastecer bibliotecas e escolas, criando assim uma oferta variada e acessível a todos os estudantes.
“Cá, o discurso é quase sempre o mesmo: ‘Se as pessoas não têm o que comer, se vivem aflitas, não vão gastar dinheiro em livros’. O livro é visto como um artigo de luxo, algo elitista. A APEL tem insistido muito no refinanciamento das bibliotecas públicas”, sublinhou, durante a entrevista. Para reforçar essa ideia, lembrou a importância de apostar na leitura desde a infância, dizendo acreditar que esse seria o caminho para formar “uma sociedade mais capacitada e mais livre”.
Contributos para a APEL e para a LeYa
Enquanto presidente da APEL, Pedro Sobral trabalhou para aproximar a Feira do Livro de diferentes gerações, convidando autores nacionais e estrangeiros, organizando sessões de autógrafos e criando oportunidades para o público contactar com livros de géneros diversos. Nesta 93.ª edição, tinha como objetivo reforçar a aposta em escritores internacionais, incluindo figuras muito conhecidas do público jovem.
O mesmo empenho foi visível no exercício das suas funções como administrador das Edições Gerais do grupo LeYa, onde se dedicou a promover a liberdade de edição. Defendia também a ideia de que a diversidade editorial era essencial: das obras canónicas até aos novos autores que chegavam a nichos específicos de público, todos deveriam ter lugar no mercado.
A direção executiva da LeYa assegurou que “tudo fará” para prosseguir o projeto conduzido por Pedro Sobral com a mesma determinação e entusiasmo que ele demonstrava. Trata-se, nas palavras da editora, de honrar “o legado de um homem que acreditava profundamente na força transformadora dos livros”.
Ligação à cidade e ao exercício físico
Além do trabalho no setor livreiro, Pedro Sobral era conhecido pelos seus hábitos de corrida: começava de madrugada e percorria ruas e jardins de Lisboa, registando momentos com a lente da câmara de telemóvel. Depois do treino, partilhava frequentemente as fotografias nas suas redes sociais, mostrando o nascer do sol na capital, o movimento dos primeiros transportes públicos ou as ruas antigas ainda desertas.
Essa dedicação ao exercício estendia-se ao ciclismo, atividade que acabou por lhe ser fatal. A Avenida da Índia, onde foi vítima do atropelamento, integrava frequentemente os percursos de quem gosta de percorrer a zona ribeirinha em duas rodas. Sendo uma via com tráfego considerável, sobretudo nas primeiras horas da manhã, a PSP relembra a importância da atenção de todos os condutores, já que há cada vez mais pessoas a circular de bicicleta, tanto para lazer como em deslocações diárias.
Contributos para o debate político e cultural
Na entrevista dada em 2023, o editor insistiu na necessidade de reforçar a proximidade entre os decisores políticos e a realidade quotidiana: “Muitos políticos deviam sentar-se a beber um café a essa hora e perceber o que é o país real”, disse, numa alusão ao que presenciava enquanto corria ao amanhecer. Estas declarações espelhavam o seu pensamento sobre a importância de uma participação cívica atenta aos desafios concretos, nomeadamente ao nível do acesso à educação e à cultura.
Outro contributo notável de Pedro Sobral passou pela reivindicação de medidas como a criação de um “cheque-livro” para jovens que perfizessem 18 anos, permitindo-lhes adquirir obras gratuitamente. Mencionava, a título de exemplo, experiências semelhantes em países como França e Espanha, alegando que esse tipo de apoio podia ser decisivo para fomentar o gosto pela leitura numa faixa etária crucial para o desenvolvimento de hábitos culturais.
O último adeus e o legado de um editor
A morte de Pedro Sobral, numa fase em que acumulava projetos editoriais e planos de expansão para a Feira do Livro de Lisboa, surpreendeu o meio cultural e editorial português. A LeYa, no seu comunicado, não deixou de sublinhar que a melhor forma de homenagear o administrador será “prosseguir o seu trabalho com a mesma convicção”. A editora considera que a perda é “irreparável”, mas acredita que as ideias e valores que nortearam a atuação de Pedro Sobral perdurarão nos projectos futuros.
Também a APEL se manifestou, recordando o percurso de um presidente que esteve envolvido de forma intensa na modernização e promoção do sector. Colegas de outras editoras e profissionais do livro deixaram notas de pesar, destacando o empenho que Pedro Sobral colocava em cada iniciativa. Nas redes sociais, leitores e autores partilharam imagens das corridas que Pedro fazia, ou recordaram conversas que tiveram com ele sobre a importância da literatura e da liberdade de expressão.
Uma vida dedicada ao livro e às ruas da capital
Aos 51 anos, Pedro Sobral estava no auge de um percurso que conciliava o gosto pela aventura madrugadora com a responsabilidade de gerir projectos editoriais de grande envergadura. O seu testemunho sobre Lisboa, “entre a cidade que se deita e a que acorda”, ganhava forma em fotografias, que eram partilhadas, dia após dia, com amigos e seguidores.
Numa das passagens mais marcantes da entrevista concedida a “Mensagem”, Pedro Sobral falara do momento em que, depois de uma subida esgotante até ao Miradouro de Santa Luzia, parava para observar a cidade a despertar. Realçava a paz, a luminosidade frágil e a sensação de pertença. É dessa imagem que muitos se recordam agora: um homem que procurava, em cada corrida, captar a essência de Lisboa e que encontrava inspiração para a sua actividade editorial no ritmo sereno das primeiras horas da manhã.
Continuidade no trabalho em prol da leitura
Nos últimos anos, Pedro Sobral vinha defendendo, com particular ênfase, a necessidade de Portugal valorizar mais as bibliotecas, reforçando o seu acervo de livros, de modo a democratizar o acesso à leitura. Sublinhava que investimentos em edifícios e infraestruturas podiam ser importantes, mas que não surtiam o efeito desejado se, depois, faltassem obras que pudessem ser lidas, consultadas e requisitadas pelo público.
Nos discursos que proferia enquanto presidente da APEL, frisava que esta era a forma de “formar gerações mais livres e esclarecidas, capazes de pensar pela própria cabeça”. Numa sociedade em que o digital coexiste com o papel, acreditava que a chave estaria em conciliar várias formas de leitura, sem menosprezar nenhuma. Costumava dizer que os livros ainda mantêm a sua aura especial, por serem objectos tangíveis e dotados de uma certa intimidade que nem sempre se encontra nos dispositivos electrónicos.
Um exemplo para editores, livreiros e leitores
A fatalidade na Avenida da Índia interrompeu um percurso que ainda tinha muito para dar. Com a organização de eventos relacionados com o livro, sob a alçada da APEL, Pedro Sobral pretendia contribuir para aproximar públicos e escritores, gerando oportunidades de descoberta literária em espaços acessíveis e ao ar livre, como acontecia na Feira do Livro de Lisboa.
O sector editorial, que ainda se está a refazer do impacto da pandemia, perdia assim uma figura que, segundo o grupo LeYa, tinha uma “energia contagiante”. Os que com ele trabalhavam salientam a sua preocupação com todos os elementos da cadeia do livro – desde o autor, que muitas vezes luta por ver a sua obra publicada, até ao leitor, que pode passar por dificuldades económicas para adquirir exemplares de que precisa ou deseja.
Últimos tributos e reconhecimento
Diversos autores e figuras ligadas à cultura em Portugal expressaram consternação. Mensagens de solidariedade para com a família e amigos multiplicaram-se, bem como recordações de encontros na Feira do Livro ou em lançamentos realizados em livrarias de Lisboa, Porto e outros pontos do país. Nesses testemunhos, destacaram-se as palavras de apreço pelo rigor e dedicação que Pedro Sobral colocava em cada projecto, aliando a perseverança à vontade genuína de fazer a diferença.
Embora o impacto seja inultrapassável, como referiu a LeYa, haverá, na memória coletiva do setor editorial, a imagem de um homem que, ao primeiro raiar do sol, corria pela cidade onde nascera e que tanto amava. Com ele, levava sempre um olhar curioso e crítico, disposto a parar para registar uma nova perspectiva ou para confirmar que Lisboa continuava a ser, mesmo nas madrugadas mais silenciosas, a sua fonte inesgotável de inspiração.
Pedro Sobral deixa um legado que se sente nas estantes das livrarias e no entusiasmo das Feiras do Livro, bem como na certeza de que a cultura e o conhecimento são ferramentas essenciais para o desenvolvimento do país. Tal como as suas palavras revelaram, acreditava que investir no livro era investir, ao mesmo tempo, na liberdade e na imaginação. Para tantos que o conheceram, o editor que corria e fotografava as manhãs de Lisboa fará sempre parte do horizonte literário português.
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Um postal que a APEL coleciona todos os anos. E que Pedro Sobral junta aos postais que fotografa nas suas corridas matinais:
As corridas de Pedro Sobral pela cidade não deixam escapar um reflexo, um contraste ou uma boa composição de Lisboa. Fotos: Instagram de Pedro Sobral