Os mais recentes desenvolvimentos quanto aos casos da Operação Influencer, a absolvição de Miguel Alves e a corrupção na Madeira imploram urgente atenção em relação ao funcionamento do sistema judicial português. A polémica dos noticiários centra-se na eventual necessidade de sujeitar a Procuradoria-Geral da República à prestação de esclarecimentos sobre processos que provocam crises políticas, perante a Assembleia. Sofremos com um perverso problema substancial e estrutural naquele que é um dos imprescindíveis pilares do estado de direito democrático, plasmado no segundo artigo da nossa Lei Fundamental.
Estudante de 4º ano da Licenciatura em Direito na Universidade de Coimbra
“Os conflitos de interesses, as infelizes taxas de resolução, eficácia e congestão dos tribunais, as portas giratórias, os persistentes crimes do colarinho branco e as polémicas dos megaprocessos ridicularizam a justiça nacional”
Torna-se assustadora a atualidade do livro de Nuno Garoupa, em que apontava, desde 2011 (altura em que foi publicado), para a crise do paradigma judicial português, no livro O Governo da Justiça. O corporativismo nas magistraturas, a falta de planeamento, avaliação e realismo legislativo, o “divórcio” entre os tribunais e a sociedade e a congestão de processos pendentes de uma decisão judicial incorporam os cancros de que aquela padece, sem previsão de melhoras. O professor universitário alerta para três razões fundamentais que se prendiam com o desajustamento histórico, a obediência da administração e do governo de justiça a um modelo caduco e ultrapassado, e à incapacidade de Portugal ultrapassar os estrangulamentos conceptuais que presidem à crise de justiça, num ciclo infernal de pequenas mudanças que falham sistemicamente.
A visão do poder político quanto às magistraturas passa por um desenho institucional como garante contra o totalitarismo, pela separação de poderes, que foi instaurada numa altura pós-ditadura que agora parece ter caído em confusão. É defendido que, antes pelo contrário, se deve seguir um aumento de influência substantiva e processual e da independência administrativa com correspondente responsabilização e transparência num verdadeiro sistema de “checks and balances”. Recorrendo-se ao princípio da separação de poderes, “limitou-se a intromissão do poder judicial no poder legislativo e executivo. Os resultados em termos de qualidade judiciária, eficácia e celeridade estão à vista”. Afirma que nos pautamos por um modelo errado de governo de justiça porque foi criado com uma conceção deficiente de separação de poderes e possivelmente mais apropriada para outro século. Seguimos uma tradição que, simplesmente, se mostrou inadequada, mas bastante confortável para um poder político desresponsabilizado e profundamente incompetente.
Debruçamo-nos sobre uma mais adequada transmutação da gestão da organização judiciária, de nomeação, avaliação, seleção e avaliação do desempenho da judicatura (promoção, retenção) como, por exemplo, a existência ou não de um conselho único, fundindo-se a magistratura judiciária com a magistratura do Ministério Público. É argumentado que o melhor modelo para assegurar a “accountability” é a eleição direta dos magistrados (como é a prática em alguns estados americanos) ou a nomeação direta pelo poder político sem qualquer tipo de carreira judiciária funcionalizada.
As portas giratórias entre o poder político e judicial, de juízes que decidem seguir uma carreira política e depois retornam aos tribunais estimulam conflitos de interesses e parcialidade que não devem subsistir. O próprio Conselho Superior de Magistratura, reconhecendo o problema, pediu que se alterasse a lei de modo a não facilitar as portas giratórias e, ainda assim, permanece a inação. Os crimes de colarinho branco, o poder de locação de recursos judiciais que o ministério das finanças se recusa a abdicar e o levantamento de estatísticas da justiça pelo próprio ministério da justiça, explicam alguns destes vícios e problemas. Quanto às promoções, pelo modo como a monotorização da produtividade é feita, a falta de quantificações e critérios reais parece surreal. No episódio 147 do podcast 45 graus, Nuno Garoupa aponta ainda para a seleção dos nomes à Procuradoria-Geral da República gerados nos corredores do poder político sem nunca chegar a público outros nomes considerados e a razão da sua exclusão.
Num estudo estatístico mencionado pelo mesmo, conclui-se o facto de ser significativo que se o partido que escolheu o juiz está no governo (art.222ºCRP, o tribunal constitucional é composto por 13 juízes, sendo dez designados pela Assembleia e três coaptados por este), esse mesmo juiz está mais disposto a votar pela não inconstitucionalidade da lei, denotando um evidente reflexo de partidarismo.
Por conseguinte, com um Estado fortemente intervencionista e uma sociedade civil muito débil, foram criadas as condições que favorecem a captura das instituições pelos grupos de interesse, desvalorizando a prossecução do interesse público. Os conflitos de interesses, as infelizes taxas de resolução, eficácia e congestão dos tribunais, as portas giratórias, os persistentes crimes do colarinho branco e as polémicas dos megaprocessos ridicularizam a justiça nacional.
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