IUC-IUC, OU O NOSSO PEQUENO MUNDO DE PATAS PARA O AR
Ao tempo do governo Guterres, o ministro Cravinho inventou as SCUT (rodovias Sem Custos para o Utilizador) em 1997. Em 2010, Sócrates decidiu que todas passariam a pagar portagens, sentença executada desde logo em algumas delas (Costa de Prata, Norte Litoral e Grande Porto). A vez da Via do Infante chegou no dia 8 de Dezembro de 2011, já em pleno período de intervenção da Troika. A rebaptizada A22, que sempre fora prometida ficar isenta, não ficou. Seguiram-se mais de uma década suplicante pelo fim da cobrança. Nessa luta, o Algarve saiu à rua, e todo o espectro político-partidário regional se pronunciou, perante o desprezo das cúpulas do poder que sucessivamente desfilaram em Lisboa.
Dá-se com uma mão, e tira-se com a outra, do bolso esfarrapado de quem menos pode. Em vez de os ajudar de forma mais efectiva, em nome da transição climática, a abater o velho para comprar novo, ainda se calca mais em cima dos desgraçados
A 19 de Junho de 2020, a Assembleia da República aprovou a Resolução 21/2020 que, entre outras coisas, recomendava a suspensão da cobrança de portagens na Via do Infante, “pelo menos até à total requalificação da Estrada Nacional (EN) 125”. Passaram mais três anos, e nada. Nem se acabou a requalificação da Avenida 125, nem se suspenderam as portagens. Até que, há dias, o nosso Primeiro anunciou finalmente uma redução de 30% nas portagens de um conjunto de ex-SCUTS (onde se inclui a Via do Infante), a partir de 1 de Janeiro próximo. O benefício teria, disse-se, um custo total de 72,4 milhões de euros para os cofres do Estado. Poucos dias depois veio outra notícia. Para compensar o rombo, o IUC das viaturas mais velhas seria aumentado. Ou seja, o ónus iria recair precisamente sobre um dos estratos mais desfavorecidos da sociedade. Dos cidadãos que têm carro, precisam de carro, mas andam de carroça velha pela simples razão de que não têm dinheiro para comprar outro melhor e mais recente. A proposta de Orçamento de Estado tudo confirmou, preto no branco. A coberto de um meritório propósito ambiental de retirar da circulação viaturas antigas e poluentes, mas com um pouco aliciante estímulo pecuniário de menos de três mil euros que não dá para mandar cantar um galo, muito menos para adquirir viaturas de zero emissões (eléctricas e outras que tais) a preços inacessíveis para a generalidade da população, espeta-se a faca do IUC no coração dos mais desvalidos. Imposto que, aliás, tem vindo a sofrer aumentos brutais e desproporcionados nos últimos anos. É lá que o Estado quer recuperar o que vai gastar com o abate das carroçarias obsoletas. Dá-se com uma mão, e tira-se com a outra, do bolso esfarrapado de quem menos pode.
Em vez de os ajudar de forma mais efectiva, em nome da transição climática, a abater o velho para comprar novo, ainda se calca mais em cima dos desgraçados. Para cúmulo do absurdo, a filosofia do mecanismo colocará quem menos pode economicamente e se vê forçado a circular com automóveis e motociclos matriculados anteriormente a 2007, a financiar os descontos das portagens de autoestrada de quem se passeia num Tesla ou num Polestar. Chamam a isto justiça social. A ver vamos como termina a novela orçamental. A esperança em que um raio de razoabilidade abençoe o espírito dos parlamentares é ténue, e a maioria que lá manda tem um registo de autismo perante iniciativas populares como a petição que por aí circula já na casa das centenas de milhar de signatários. Mas só que alguém tenha tido tão bizarra ideia, já é mau demais e ilustrativo do que certas cabecinhas pensadoras são capazes de fazer no afã de esmifrar o zé povinho. É gente assim que nos deixará como legado um passado de sofreguidão e um futuro de rebelião. Uma memória maldita de sofrimentos desnecessários e castigos ditados pela incompetência, obstinação e ausência de experiência de vida, de como ela é difícil para tanta gente.
Todos se lembrarão certamente daquela história da Graça Desgraçada, caída em desgraça por causa de uma porcaria de nada que não teve graça nenhuma. Não se lembram? Pois claro que não! Porque não se deveriam lembrar de uma coisa que no fundo não aconteceu, mas poderia ter acontecido. Como aqueles sonhos sem fim, às voltas, às voltas no estômago cerebral, até virarem pesadelo certificado.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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