Obra finalista do Prémio LeYa em 2021, A Última Lua de Homem Grande, do autor cabo-verdiano Mário Lúcio Sousa, publicado pela Dom Quixote, é um belíssimo e original romance sobre uma grande figura nomeada como um dos grandes líderes da História, coincidentemente, três meses apenas de o escritor ter terminado o livro. Num repto lançado em 2020 pela BBC History Magazine aos historiadores, sobre quem seria o maior líder da História, tendo exercido poder mas também um impacto positivo, entre os vários nomeados, de reis a papas, surgiu, em segundo lugar, o nome de Amílcar Cabral.
Como nos é dito logo na nota introdutória, “Este livro conta a sua vida na sua morte”.
O romance inicia justamente com ecos de Crónica de uma Morte Anunciada, de Gabriel García Márquez, pois, ao lermos, logo na primeira página, que são cerca das 22h00 quando lhe dão um tiro, recuamos logo em seguida para a manhã desse dia, pelas 6h45, em que o protagonista afirma, frente ao espelho “Est’é nha último dia” (pág. 18).
O romance é narrado na terceira pessoa. Contudo a narrativa desfia-se num original e inusitado monólogo ou, como se pode ler nas primeiras páginas, um “solilóquio” (pág. 19), intercalado com breves falas e pensamentos, alternando entre o presente, em que a vida do protagonista deitado por terra se esvai, com o passado, à medida que as memórias se tornam nitidamente vívidas. Como se aos últimos segundos de existência correspondesse o esbater das fronteiras entre o agora e o então. A tudo isto, omnisciente e omnipresente, persiste o grande olho da Lua Cheia. Simultaneamente, ao passar em revista a sua existência inteira, Amílcar tenta compreender, afinal, quem deseja a sua morte e desferiu aquele tiro – “tenta vislumbrar onde foi que seu caminho se entortou e veio dar neste dia de matança pressentida” (pág. 50).
Sem chegar a meio século de vida, confrontado com a morte aos 49 anos, o nosso herói revive uma vida cheia, em regressões em que revisita a infância, a relação com a mãe, a sua vida de estudante, os amores, as traições, o sonho da independência para as suas duas pátrias, Guiné e Cabo Verde. Simultaneamente, tece-se um certo revisionismo do absurdo da guerra colonial assim como dos meandros dos interesses internacionais e dos desmandos do poder em África –esses “frescos presidentes africanos, tiranos doidos e insanos, que lhe viraram as costas, e estão a matar mais compatriotas do que quantos perderam a vida a lutar pelas independências” (pág. 98).
Por este romance desfilam ainda, mesmo que fugidiamente, grandes figuras do século XX com impacto mundial com quem este Homem Grande, ou Mais Velho, ou Chefe, lidou: líderes de mais de vinte países, figuras históricas como Mao Tsé Tung, Che Guevara, Fidel Castro, um Papa, poetas, e, claro, o seu “herói” (pág. 98) – a massa anónima do povo.
Sem se tornar elegíaco ou encomiástico, este é um belíssimo romance, onde vinga sobretudo a originalidade da prosa. Ainda que possamos pensar em reminiscências da prosa de Mia Couto, Mário Lúcio Sousa volta a provar a sua destreza e inventividade narrativa (como em romances anteriores). Temos aqui falas em crioulo, que surgem imediatamente traduzidas em português logo de seguida, como um eco. Novos vocábulos criados pelo autor, tão sugestivos quanto líricos – “eram um apaixonado e uma amãexonada” (pág. 40). Marcas pontuais de outras variantes do Português, como acontece com “advertiu-lhes” (pág. 213), em vez de “advertiu-os”. Expressões e trocadilhos, “desunindo e concluindo” (pág. 214). E uma prosa tão lírica quanto viva, demonstrando a plasticidade da língua portuguesa além-fronteiras.
Mário Lúcio Sousa nasceu no Tarrafal, ilha de Santiago, Cabo Verde, em 1964. Licenciado em Direito pela Universidade de Havana, foi deputado do Parlamento e embaixador cultural do seu país antes de se tornar, em 2011, Ministro da Cultura. Condecorado com a Ordem do Vulcão, ao lado de Cesária Évora, foi o artista mais jovem de sempre a receber tal distinção. É músico e compositor. É autor de vários romances, como O Novíssimo Testamento (romance, 2010), Prémio Literário Carlos de Oliveira; Biografia do Língua (romance, 2015), Prémio Literário Miguel Torga e Prémio do P.E.N. Clube para Narrativa; O Diabo Foi Meu Padeiro (2019).