A tentativa de homicídio de José Manuel Anes, esfaqueado em casa, trouxe-me uma ideia com fio de navalha: envelhecer, hoje, é quase uma atividade de risco. Talvez o perigo não esteja apenas nas lâminas alheias, mas no gume invisível da indiferença social. Esta crónica nasce dessa constatação amarga — de que o envelhecimento moderno é uma espécie de crime perfeito: todos participam e ninguém confessa.Daí, este convite a uma autópsia da produção social do envelhecimento moderno — que, ironicamente, continua de boa saúde.
Carreira: velho, feio e cisgénero
Hoje comecei a minha carreira de velho, feio, miserável e, pior ainda, de cisgénero — essa condição anatómica que, por não ser performativa, já é quase ofensiva. Um escândalo biológico. Quanto aos três primeiros atributos, são-me supervenientes e inevitáveis: o espelho confirma-os sem dó nem piedade.
Gostaria de ter enterrado tesouros nos lugares onde fui feliz, para os desenterrar depois e recordar. Infelizmente, os sítios evaporaram-se com a mesma pressa que a felicidade, e nem o GPS da memória os encontra.
Velhice e crise de poder
Comparado com os dias de hoje — em que proliferam feios e miseráveis com o ar triunfal de quem venceu o concurso da barbárie —, encontro algum consolo no cemitério dos meus livros. Aí, entre páginas amareladas pelo tempo e frases que já não lembrava, reencontro o jovem que fui: bonito, idealista, um tanto ridículo.
O tempo devora-nos, mas convencemo-nos de que ele só carcome os outros. Quando, por acaso, reencontramos um amigo de juventude, a mentira social emerge em modo automático:
— Eh pá, o tempo não passa por ti! Estás ótimo!
Mentimos com entusiasmo. O outro devolve o sorriso, igualmente falso, e pensa: — “Este velho arrogante acha-se novo. Ainda não percebeu que já não é influencer, nem modelo de anúncio de aftershave”.
É a ironia da vida moderna — aquele que antes moldava opiniões, agora mal consegue modelar a própria face. Travestido de velho, resta-lhe a nostalgia do like que nunca mais virá. Passa a viver o luto do algoritmo.
A peste grisalha
Os velhos sempre souberam que o preconceito lhes assenta como um sobretudo herdado: gasto, mas inevitável. A novidade é que, no admirável mundo global, o desprezo por eles também se globaliza. Portugal não tem o exclusivo da “peste grisalha”; apenas o executa com mais melancolia e menos eficiência.
Cícero, há dois mil anos, já se inquietava com o assunto. Na Roma antiga, os idosos morriam depressa — o que, convenhamos, ajudava à sua reputação. Hoje vivem demasiado, e isso constitui um imenso transtorno para as folhas de excel da Segurança Social.
Antigamente, as famílias tinham dúzias de filhos e um sistema de rodízio doméstico: cada um cuidava do velho por uns meses, até que o vetusto — piedoso e colaborante — morresse. Quando adoecia, a medicina benzia-se e a “Unção dos Enfermos” fazia o resto. Era simples, eficiente e barato.
Agora é diferente. A família emagreceu, as mulheres trabalham, e os velhos recusam-se a morrer no tempo combinado. Vivem demasiado, desafiam as estatísticas, o que os torna insuportáveis. Setenta, oitenta, noventa anos — e ainda respiram! O capitalismo, que sempre contou os minutos, já não sabe o que fazer com tanto tempo extra. É o tipo de progresso a que os economistas chamam “problema”.
Velhice e política: uma exclusão elegante
Se há campo fértil para a exclusão, é o da política. O idadismo é o último preconceito praticado em público sem vergonha nem hashtags de denúncia.
Quando ouço políticos falar de “inclusão”, arrepia-me o catálogo eufemista. Incluem tudo: género, etnia, deficiência, diversidade — tudo menos o idoso, essa nota fora da pauta. Lembram-se dele apenas em vésperas de eleições, quando beijar uma testa enrugada rende votos e ternura fotogénica, com prazo de validade até ao fecho das urnas.
Os partidos, esses templos modernos do rejuvenescimento instantâneo, cultivam o mito da “cara nova” como panaceia. O Conselho de Estado é exceção: uma espécie de museu nacional do poder senil, onde se preserva, em formol e protocolo, a elite geriátrica da República. Há quem lhe chame, com carinho e sarcasmo, “a residência sénior mais privilegiada do país”. E com razão.
Fala-se muito de “envelhecimento ativo”, expressão que soa a aula de zombaria metafísica. Na prática, o lema é outro: afastar os velhos para que não estraguem o enquadramento da esperança.
Mas a esperança média de vida cresce, impertinente, zombando das previsões orçamentais. Portugal será, em 2040, um dos países mais envelhecidos da Terra. Não por castigo divino, mas por teimosia natural: ninguém quer morrer cedo.
O dilema produtivo
Não é o envelhecimento que é o problema — é o desinteresse por reinventar o seu sentido. Se o velho tem saúde e conhecimento, porque não há de participar? O saber não se aposenta por decreto. O conhecimento não apodrece com a idade, e a experiência raramente dá erro de sistema.
A produtividade, hoje, depende de duas coisas: saúde e conhecimento. A primeira aumentou e o segundo atrofiou entre reformas precoces, ditas antecipadas. Se o país tivesse investido em manter os velhos úteis e curiosos, talvez o PIB também tivesse envelhecido melhor.
E agora?
A nostalgia é um consolo inútil. O passado é um museu: bonito de visitar, mas desconfortável para dormir. É no presente que o envelhecimento precisa de uma nova gramática.
Um país, onde um terço da população tem mais de 65 anos, precisa de criatividade — não de solidariedade caritativa. Nenhum país é tão pobre que não possa ver os seus envelhecerem com dignidade; nenhum é tão rico que dispense a sabedoria de quem já tropeçou muitas vezes e ainda assim caminha.
É preciso ouvir os velhos, de verdade — não como figurantes de relatórios sobre “envelhecimento ativo”, mas como protagonistas da própria história que ainda respiram. Ninguém entende melhor o envelhecer do que quem o experimenta no corpo e na alma. Eles sabem mais sobre o envelhecer do que qualquer PowerPoint ministerial.
Por isso, convém lembrar: somos a geração da pílula, do homem na Lua e dos protestos que mudaram o mundo. Não nascemos para a obediência serena.
Enquanto respirarmos, a vida continuará a ser nossa. E que ninguém nos venha dizer o contrário. Se alguém duvida disso — que olhe bem: tais rugas são linhas de batalha, não de rendição, porque não há rugas se não como reflexos de estados de espírito e o espírito nunca cria rugas.
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