O padre Gabriel Malagrida não encontrou nada melhor para descrever o que tinha acabado de acontecer em Lisboa: “Nem o diabo inventaria uma maneira mais certa de nos levar à perdição”.
Quis ele dizer para si, que o terramoto só podia ter sido obra de outra ordem e natureza. Para um homem crente e de boa fé como ele, o seu Deus misericordioso não iria tão longe no castigo divino, nem tão pouco permitiria ao demónio tamanhos poderes, em imaginação e crueldade, para aquela desgraça ter acontecido.
Para o jesuíta, que se haveria de revelar mais tarde um místico com visões do céu e do inferno, o diabo não terá passado por ali e tudo afinal não representara senão um violento fenómeno geofísico nunca visto. Mas por ter dito o que disse, foi julgado por heresia e levado ao cadafalso pela inquisição politicamente controlada pelo absolutismo do Marquês de Pombal, num ajuste de contas com os seguidores dos Távoras que perseguiu até à morte.
Este caso do missionário não deixou de indignar a Europa do iluminismo: depois do terror, seguiu-se o despotismo à solta, disse-o chocado o filósofo e romancista francês Voltaire, que não sendo suspeito de partilhar as ideias de Roma nem dos jesuítas, se mostrou crítico relativamente à atuação discricionária do ministro português. E transportou o caso para a sua obra Cândido, onde desafia diretamente a existência de Deus, pois que se ele existisse não poderia ter tolerado tamanha tragédia e sofrimento.
Também Imannuel Kant escreveu sobre o assunto, trazendo da esfera do sobrenatural para o domínio da ordem natural das coisas a explicação do fenómeno. De forma imperativa e categórica, Kant, como Malagrida e Voltaire, “tentou mostrar que, ao invés de procurar no desastre significados ocultos”, deviam buscar-se, mais na física do que na metafísica, as respostas para explicar o inferno na terra.
E se o mundo ficou horrorizado com a morte e destruição do sismo e do dilúvio em Lisboa, mais os incêndios que lhes seguiram, muito ficou por conhecer da extensão do fenómeno que se propagou em ondas de choque de norte a sul pelos dois lados do atlântico. Não é possível determinar ainda hoje com rigor o número de vítimas, e discute-se também onde se localizou o seu epicentro. Mas domina a ideia que ocorreu no mar, a cerca de 120 milhas náuticas a sudoeste do Cabo de S. Vicente.
À parte as explicações técnico-científicas, muito do que se conhece do sismo e do maremoto no Algarve – a par de Lisboa e Setúbal as regiões mais afetadas -, foi o levantamento das paróquias em inquéritos pedidos pelo marquês de Pombal para apurar o número de mortos e os danos registados em cada local.
“Pelas 9h30 da manhã do 1º de Novembro, estando o dia claro e sereno como de estio e vento de noroeste, ouviu-se um grande trovão surdo; logo passado 3 ou 4 minutos principiou a tremer a terra com espantosa violência; o mar recolheu-se em parte mais de 20 braças (45 metros), deixando as praias em seco e arremetendo imediatamente para a terra com tremendo ímpeto, que entrou por ela dentro mais de uma légua, sobrepujando as mais altas rochas, tornando a retrair-se e romper por três vezes dentro de poucos minutos, (…) e deixando quase arrasadas todas as povoações marítimas” – este é apenas um dos relatos no Algarve, sobre como tudo começou e se repetiu até 20 de agosto do ano seguinte “com poucos dias de interpolação e quase sempre de noite”.
Em Vila do Bispo “só uma casa ficou em pé” e em Sagres “o mar recolheu coisa de uma légua deixando em seco as enseadas em que ancoram naus de alto bordo; veio depois à terra com tal violência que pela parte norte montou rochas da altura de 60 braças e no leste de 80, deitando dentro da praça muito peixe e grandes pedras”.
No convento do Cabo de S. Vicente “ouviu-se um grande trovão surdo e logo a tremer a terra“ e “passados 6 a 7 minutos recolheu-se o mar; (…) pela parte leste em distância de meia légua, o mar na fundura de 8 braças, secou todo inteiramente; e depois cresceu com tanta fúria que igualou a rocha e muralhas da fortaleza de Beliche que terão umas 30 braças de altura dentro da praça”.
As cidades, vilas e aldeias do barlavento algarvio foram as mais afetadas, de tal modo, por exemplo, que em Vila Nova de Portimão, diz Silva Lopes, “o rio elevando-se 6 braças (13 metros), arrasou a fortaleza de S. João (…) e descobriu na praia ruínas de uma povoação que não se pode ser examinada porque logo tornou a ficar debaixo de água”. Também em Almádena o mar pôs à vista uma grande povoação não identificada que voltou a cobrir.
Em Lagos só ficou de pé uma casa no castelo que é o Palácio dos governadores, tudo o mais ficou destruído. Segundo o prior de S. Sebastião, João Baptista da Costa Coelho, “depois do terramoto, passado um quarto de hora se elevou o mar de tal sorte que parecia tocar as nuvens”. O mar “subiu à altura de 5 braças ficando razante com as muralhas da cidade, entrou pela terra dentro mais de meia légua levando 5 barcos quase à mesma distância”.
Em Lagoa “o convento do Carmo que estava feito de novo, se desfez inteiramente, ficando sepultado em suas ruínas o padre Manuel do Nascimento que tinha acabado de confessar uma mulher. Nas adegas os tornos (ruturas) das pipas foram causa de se verem correndo pelas ruas enxurradas de vinho”.
O mesmo cenário em Silves que “ficou reduzida à ultima miséria” e em Albufeira “o mar levou pelos alicerces todas as casas excepto 27. De toda a gente que estava na igreja Matriz quando desabou encontraram a morte 227 pessoas”.
Em Aljezur “o rio que ia em meio encher, secou de repente”. E em Quarteira “o mar subiu tantas varas que entrando pelas ribeiras inundou os campos”; morreu muita gente e o padre António Álvares Coelho que estava a dizer missa no altar de Nª Sra do Rosário. O mar saiu de si por cinco vezes correndo sobre os montes em altura de 6 braças (…) chegou até à casa da antiga propriedade do Duque de Loulé, uns três quilómetros da praia”.
Boliqueime “foi das terras algarvias que mais sofreu e tanto que sendo primitivamente edificada no sítio de Boliqueime Velho, como esta ficou destruída, passou depois para actual povoação”. E em Loulé, ocorreu o mesmo cenário de destruição e “caiu a cadeia e fugiram todos os presos. O castelo desabou arrastando 200 casas”.
Na capital do reino, em Faro, as crónicas relatam que a Sé teve só uma arrombada mas a igreja de S. Pedro e o convento dos Capuchos caíram com violência: “governava as armas o arcebispo D. Frei Lourenço de Sta Maria, o qual salvando-se por entre as ruínas do seu palácio, que veio todo a terra, em camisa de dormir e para dar o exemplo pegou de uma enxada para desentulhar muitos mortos e feridos, administrando os sacramentos (…) o mar saiu pouco do seu curso ordinário, talvez por se espraiar pela ilha”.
Em Olhão, com excepção da ermida de Nª Sra da Soledade não houve praticamente estragos, e em Tavira, segundo Silva Lopes, “sofreu a cidade consideravelmente: a rua nova pequena e ribeira ficaram inabitáveis; o hospital que se estava acabando de reedificar ficou arrasado e o Convento de S. Francisco padeceu muitas ruinas tal como a Ermida de S. João da Corredoura”. A Memória Paroquial refere que de “Cacela outrora formosa e antiga vila (…) hoje apenas existe a antiga igreja”. E em Castro Marim, “a parte fronteira com a Espanha e a do mar ficou rasa; na igreja matriz, antes dos Templários, no mais alto da vila não ficou pedra sobre pedra”.
Foi, portanto, generalizada a destruição em todo o Algarve. O sismo com um grau de magnitude calculado entre 8,5 a 9 na escala de Richter ou de X a XI na escala de Mercalli modificada, foi um dos mais mortíferos da história. Mas não era o primeiro nem seria o último com efeitos devastadores. E de tal modo o Algarve está sujeito a estes fenómenos, que o jornal de Lisboa “Imprensa e Lei” depois do sismo de 1856, escreveu na sua edição de 20 de Janeiro:
“O reino do Algarve parece estar desamparado da misericórdia divina”.
Fontes: “O Megasismo do 1º de novembro de 1755”, F. Luís Pereira de Sousa; outros