Mudar de cidade pode parecer a solução perfeita para uma vida mais leve e equilibrada. Entre o sol, os cafés com esplanadas e um ritmo mais lento, Lisboa tornou-se o refúgio de muitos estrangeiros à procura de uma existência mais tranquila. Mas, à medida que o número de estrangeiros recém-chegados cresce, a cidade começa a transformar-se, e surgem perguntas inevitáveis sobre pertença, custo e justiça, como é caso deste caso testemunhado por uma britânica, relativamente à cidade portuguesa de Lisboa.
Nos últimos anos, esta cidade portuguesa passou a acolher milhares de profissionais estrangeiros que trabalham à distância, recebem rendimentos do exterior e beneficiam de regimes fiscais vantajosos. Em bairros lisboetas como Lapa, Rato ou Santos, repetem-se as histórias de quem veio em busca de qualidade de vida, escolas internacionais e espaços de trabalho repletos de estrangeiros.
O quotidiano mistura famílias portuguesas com património herdado e novos residentes com salários de outros países. O resultado é uma economia paralela, falada em várias línguas e cada vez mais desligada da realidade local.
A facilidade com que muitos se tornaram residentes, sobretudo antes do Brexit, coincidiu com o regime de residente não habitual, que isenta de imposto os rendimentos obtidos fora de Portugal, de acordo com o jornal britânico The Guardian. “Estes vistos foram criados para atrair estrangeiros desejáveis”, explica Fabiola Mancinelli, antropóloga da Universidade de Barcelona. “Os candidatos têm de demonstrar que são autossuficientes, possuem um determinado nível de rendimento e seguro de saúde. Espera-se que tragam o seu próprio trabalho e, em troca, muitas vezes ficam isentos de pagar imposto sobre esses rendimentos.”
Durante algum tempo, Lisboa pareceu um “sonho sem falhas”. Mas, à medida que o fosso entre rendimentos cresceu e a cidade se tornou mais cara, também aumentou o desconforto. Em 2025, Lisboa foi considerada a capital mais inacessível da Europa para comprar casa, com uma relação preço-salário de 21:1. “Não fazia ideia do benefício fiscal”, admite Chris Pitney, designer britânico. “Só percebi depois de um ano a viver aqui, quando descobri que não tinha de pagar imposto sobre os rendimentos do estrangeiro.”
Cafés novos, rendas antigas
No dia a dia, o contraste é visível nas ruas, de acordo com a mesma fonte. Cafés tradicionais transformam-se em espaços de brunch com mármore branco, estúdios de ioga substituem lojas antigas e clínicas com terapias em inglês multiplicam-se. “A ideia por detrás dos vistos é criar consumidores residentes, esperando que esse dinheiro beneficie a cidade”, afirma Mancinelli.
No entanto, o que se observa é que muitos estrangeiros acabam por gastar o seu dinheiro em negócios também geridos por estrangeiros.
Mesmo assim, nem todos vivem nesta bolha dourada. Algumas empresas criadas por imigrantes geram empregos bem remunerados para jovens portugueses, mas a perceção de que o trabalho local é “mais barato” continua. “Irrita-me quando um estrangeiro em Portugal me oferece um valor baixo só porque sou português”, confessa o escritor Alex Couto. “Vivemos no mesmo lugar. Não temos também direito a uma boa qualidade de vida?”
O peso do olhar local
As tensões não são apenas económicas. Também há uma mudança subtil no quotidiano. “Há uma certa arrogância na forma como alguns estrangeiros se movem pela cidade”, lamenta Inês, lisboeta de 60 anos. “Nos supermercados passam por cima de mim, estão sempre ao telefone, sem espaço nem atenção para os outros.”
Dois mundos partilham as mesmas ruas, mas raramente os mesmos cafés. Para muitos portugueses, a cidade tornou-se distante; para muitos estrangeiros, a integração é apenas uma palavra de conveniência, de acordo com a mesma fonte.
Necessidade e não escolha para muitos
Há também quem tenha vindo por necessidade e não por escolha. A produtora Hiwote Getaneh, que deixou os Estados Unidos em busca de segurança, sente agora apreensão com a viragem política. “Com o crescimento da extrema-direita e manifestações neonazis, começo a temer pela minha segurança”, admite.
Nos grupos de estrangeiros, discute-se o aumento do tempo necessário para adquirir nacionalidade portuguesa, proposta que poderá penalizar imigrantes do sul global, os mesmos que sustentam setores como a agricultura e as entregas ao domicílio.
Quando o sonho começa a desvanecer
Enquanto as rendas sobem, há cada vez mais estrangeiros e trabalhadores remotos que também se sentem excluídos. Alguns vivem sem acesso ao sistema de saúde, sem segurança social e com carreiras interrompidas, de acordo com a mesma fonte. “O trabalho está a tornar-se mais precário”, alerta Mancinelli. “Com a inteligência artificial e as novas fronteiras políticas, não sabemos o que espera os trabalhadores remotos.”
Nas ruas de Lisboa, protestos contra despejos e projetos turísticos tornaram-se frequentes. “Se alguém se muda para um lugar apenas para aproveitar o custo de vida mais baixo, está a explorar desigualdades, e haverá sempre reação política”, observa o antropólogo Dave Cook.
Entretanto, até eventos que parecem celebrar a vida simples acabam por expor a nova face da cidade. Festivais “sustentáveis” são afinal promovidos por agências estrangeiras e usados para vender terrenos ou condomínios, de acordo com a fonte anteriormente citada. Tudo parece demasiado perfeito, como se a vida real tivesse sido substituída por um cenário.
Um sentimento de desconexão
A falta de integração é visível. Sem laços com o sistema público, sem voluntariado, transportes diários ou leitura da imprensa local, muitos estrangeiros vivem numa bolha social e económica. “Lisboa é incrível, quem não gostaria de viver aqui?”, comenta o humorista Diogo Faro, reconhecendo o fascínio que a cidade exerce, mas também a frustração crescente de quem nela nasceu.
Esta cidade parece suspensa entre dois sonhos por cumprir, de acordo com o The Guardian: o de quem veio em busca de uma vida melhor e o de quem sempre aqui viveu e já não a consegue pagar. Como disse um jovem português a uma livreira estrangeira, “a desilusão de um sonho é universal”.
Lisboa, bela e soalheira, continua a acolher, mas também a interrogar quem nela vive: quem pertence, quem contribui e quem apenas passa, deixando a pergunta no ar sobre o que, afinal, significa viver verdadeiramente aqui.
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