Durante grande parte do século XX, os contratos de “renda antiga” garantiram estabilidade e segurança a milhares de famílias espanholas. Eram contratos vitalícios, transmitidos entre gerações, criados para assegurar um direito básico: o de ter um lar. Hoje, porém, as mudanças legislativas e a pressão imobiliária estão a pôr fim a essa era. E a história de Maricarmen, uma idosa de 87 anos que a Justiça espanhola quer despejar da casa onde vive, é um retrato doloroso dessa transição.
Maricarmen vive há quase 70 anos no bairro do Retiro, em Madrid. O seu pai assinou o contrato de arrendamento em 1956, quando a zona era ainda modesta e longe dos preços milionários atuais. Desde então, a casa na rua Sainz de Baranda foi o seu refúgio, o lugar onde cresceu e envelheceu. Agora, aos 87 anos, enfrenta uma ordem de despejo marcada para o próximo dia 29 de outubro, de acordo com o jornal digital espanhol HuffPost.
Um contrato que nasceu noutros tempos
O contrato original foi um típico arrendamento de renda antiga, criado durante o regime franquista. Estes contratos permitiam a transmissão do direito de habitação ao cônjuge e aos descendentes que vivessem na casa. O objetivo era proteger as famílias de aumentos abusivos e garantir uma morada estável. No entanto, com a sucessão de reformas legais, esses direitos foram-se reduzindo.
Com o falecimento do pai e, mais tarde, da mãe, Maricarmen ficou como inquilina, beneficiando de uma segunda sub-rogação do contrato. Foi aqui que a situação se complicou. Segundo a legislação atual, essa segunda transferência do arrendamento só pode durar dois anos, salvo se o descendente tiver uma incapacidade superior a 65%. Maricarmen, com 50% de incapacidade e mobilidade reduzida, não cumpre esse requisito.
De um lar familiar a um ativo financeiro
Em 2018, o edifício onde vive foi vendido pela família proprietária à Renta Corporación, um dos grandes grupos imobiliários espanhóis. Pouco tempo depois, o imóvel foi adquirido pela Urbagestión, empresa especializada em investimentos imobiliários. E foi aí que começaram os problemas, de acordo com a mesma fonte.
Os novos proprietários alegaram que o contrato de Maricarmen devia ter terminado em 2007 e recorreram à justiça para exigir o despejo. Embora a idosa tenha ganho em primeira instância, as sucessivas apelações acabaram por dar razão à empresa. Em março de 2024, o Tribunal Supremo de Espanha decidiu a favor da Urbagestión.
Uma decisão que ignora o fator humano
A sentença determinou que, para permanecer na habitação, Maricarmen teria de pagar 1.650 euros por mês, quase o triplo do valor atual, apesar de receber uma pensão de apenas 1.450 euros. Sem meios para suportar tal valor, a octogenária corre o risco de perder o lar que conhece desde a juventude.
O Sindicato de Inquilinas de Madrid acompanha o caso e denuncia que a aplicação rígida da lei ignora situações humanas extremas, sobretudo quando envolvem idosos e contratos de longa duração. Para muitos, trata-se de um efeito colateral da especulação imobiliária que tem vindo a transformar o mercado de arrendamento nas grandes cidades espanholas.
Este caso de Maricarmen tem ainda uma dimensão histórica. de acordo com a mesma fonte. Se o contrato tivesse sido assinado hoje, ambos os pais seriam reconhecidos como titulares, e Maricarmen seria considerada a primeira sub-rogação, mantendo o direito de permanecer. Mas, durante a ditadura franquista, a legislação proibia que as mulheres casadas assinassem contratos sem o consentimento do marido. Assim, o contrato ficou apenas em nome do pai, criando agora uma limitação legal que lhe é fatal.
Uma luta que vai além da sua casa
Determinada a resistir, Maricarmen uniu-se à campanha #NosQuedamos, promovida pelo Sindicato de Inquilinas, que luta contra os despejos e a especulação. A iniciativa pretende pressionar o Governo espanhol a aplicar a regulação dos preços da habitação prevista na Lei de Vivienda e a criar contratos de arrendamento mais estáveis. “Não tenho qualquer amparo do Governo, absolutamente nenhum”, lamenta Maricarmen. “O que deviam fazer é mudar a lei para que os contratos sejam indefinidos. Assim, as pessoas deixavam de viver com medo de ser postas na rua.”
Símbolo de um problema maior
O caso de Maricarmen tornou-se um símbolo da crise habitacional que afeta Espanha e, por extensão, boa parte da Europa. À medida que os bairros tradicionais se valorizam e os fundos imobiliários expandem o seu domínio, histórias como a desta vizinha do Retiro mostram que o direito à habitação continua a ser, para muitos, um privilégio cada vez mais frágil, de acordo com o HuffPost.
E se acontecesse em Portugal?
Em Portugal, casos semelhantes envolvendo contratos antigos são analisados à luz do NRAU – Lei n.º 6/2006, com especial relevância para o regime transitório dos contratos celebrados antes de 18 de novembro de 1990. A regra-chave é o artigo 36.º do NRAU: se o arrendatário tiver 65 ou mais anos ou deficiência ≥60%, a transição para o NRAU só pode ocorrer por acordo; na falta de acordo, mantém-se o regime anterior (com as respetivas limitações à atualização de renda). Esta proteção visa impedir que a idade ou a deficiência deixem o inquilino exposto a alterações unilaterais do contrato.
A lei foi reforçada em 2019: a Lei n.º 13/2019 endureceu salvaguardas para arrendatários em situação de especial fragilidade (designadamente idosos e pessoas com deficiência), quer quanto à oposição à renovação, quer quanto a despejos associados a obras ou demolição. Entre os efeitos práticos está a exigência de maior ponderação social e de soluções que mitiguem impactos desproporcionados sobre inquilinos vulneráveis.
Casos de despejo
Quanto a despejos, em Portugal existe o Procedimento Especial de Despejo (PED), tramitado no Balcão Nacional do Arrendamento. Ele continua a existir para várias situações (por exemplo, falta de pagamento), mas os arrendatários protegidos pelo regime transitório (≥65 anos ou deficiência ≥60%) beneficiam de garantias adicionais: a sua situação não pode ser tratada como um despejo “automático”, exigindo-se apreciação das condições legais e, quando aplicável, o recurso à via judicial com avaliação das circunstâncias concretas (vulnerabilidade, antiguidade no locado, etc.).
Importa ainda distinguir as situações de obras/demolição. O senhorio pode, em certos casos, opor-se à renovação para realizar obras profundas ou demolir (art. 1101.º, al. b), do Código Civil), mas, quando está em causa arrendatário idoso ou com deficiência, a jurisprudência constitucional consolidou que essa faculdade se encontra condicionada por deveres de realojamento e proteção acrescida, para equilibrar o direito de propriedade com o direito à habitação.
Caso na prática
Em termos práticos, num caso como o descrito, uma Maricarmen “portuguesa”, com contrato habitacional pré-1990 e 87 anos, não poderia ser simplesmente confrontada com a cessação e substituição imediata do contrato por um valor incomportável.
Sem acordo, o regime protege a manutenção das condições essenciais do contrato antigo, e qualquer tentativa de despejo teria de respeitar escrupulosamente as barreiras legais e salvaguardas aplicáveis a idosos ou pessoas com deficiência, incluindo a ponderação de soluções de realojamento quando o fundamento seja obras.
















