A Ética, seja em que contexto for, exige uma profunda coerência entre as ações e os princípios que se proclamam. Ora no momento em que redijo este artigo, o autarca de Faro que acumula o cargo de presidente da Comissão de Co-Gestão da Ria Formosa, anunciou o início da construção do novo porto de recreio de Faro, num local que colocará em risco a integridade ambiental dessa área.
Outra entidade oficial em perfeita colisão ética é a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve (CCDR Algarve) que prorrogou por diversas vezes a validade da Decisão de Conformidade Ambiental do projecto de Execução (DCAPE) com base numa Declaração de Impacto Ambiental (DIA), emitida em 2005. Ora uma DIA com quase 20 anos não expressa o que hoje sabemos! Há 20 anos atrás ninguém falava em pradarias marinhas, não se sabia que existiam nem o que eram!
O que se vê acima são pradarias marinhas. Não se trata nem de lama nem de lixo, como alguns ainda afirmam. Recordo a informação fornecida pelo CCMAR quando publiquei aqui, no Cultura.Sul, um artigo sobre este assunto em Dezembro de 2023: “as pradarias de ervas marinhas prestam serviços ecossistémicos fundamentais para o bem-estar das populações, a saber: são indispensáveis para a conservação da biodiversidade, proporcionando abrigo e berçário a muitas espécies incluindo espécies comerciais e também o icónico cavalo marinho; são verdadeiros ‘rins’ que filtram a água, prevenindo fenómenos de eutrofização; mitigam o aumento de CO2 na atmosfera/mar e a acidificação dos oceanos, porque removem o CO2 da água por fotossíntese (diminuindo a acidez) e armazenam carbono orgânico no sedimento”.
Recordo também os perigos para os quais já alertei, no mesmo artigo, caso esta obra se iniciasse: “com a dragagem necessária para a construção do porto de recreio de Faro, na localização anunciada, junto à actual doca de Faro, destroem-se cerca de 7 hectares de um habitat de ervas marinhas. Devido à remoção do sedimento que a obra implica, esta intervenção significa a emissão de 613 toneladas de CO2 para a atmosfera ― o equivalente a um incêndio de 200 hectares de floresta. Mais acresce que a destruição destes quase 7 hectares de ervas marinhas tem como consequência que se deixem de remover 37 toneladas de CO2 da atmosfera, portanto, teremos, a partir de então, o equivalente a um incêndio de 2 hectares de floresta verde por ano, todos os anos! Irá também perder-se a remoção anual de 1,7 toneladas de azoto (este valor é cerca de 2% do azoto total que a ETAR de Montenegro remove por ano)”.
Afinal de contas para que serve a ciência? De que serve realizarem-se estudos e mais estudos se os resultados dos mesmos não são tidos em conta?! Onde está o bom senso?
Por todas estas razões a nossa Ria Formosa é uma área de importância ecológica fundamental, designada como Parque Natural e classificada como Zona Especial de Conservação pela Rede Natura 2000, sendo vital para a biodiversidade e o equilíbrio ecológico da região. Para garantir a protecção e o manejo sustentável deste ecossistema foi criada a Comissão de Co-Gestão da Ria Formosa. Ela envolve a colaboração de vários actores sociais, incluindo entidades públicas - a autarquia de Faro, a CCDR Algarve, a Região de Turismo do Algarve (RTA), o Instituto do Mar e da Atmosfera (IPMA), e o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) -, associações ambientalistas e a comunidade científica. O objetivo dessa comissão é coordenar esforços para preservar a Ria Formosa e promover práticas de gestão que favoreçam tanto a conservação ambiental quanto o desenvolvimento socio-económico sustentável.
Da função de presidente da Comissão de Co-Gestão da Ria Formosa parece fazer parte, portanto, exercer um papel de liderança na defesa dos princípios de sustentabilidade e na promoção de decisões que priorizem a preservação da Ria Formosa. Por conseguinte, o dito presidente deveria garantir que as políticas locais respeitam e protegem o ecossistema, impedindo a destruição de habitats e a exploração irresponsável dos recursos naturais.
Ora é o autarca de Faro quem, ao mesmo tempo que preside a Comissão de Co-Gestão da Ria Formosa e se posiciona como guardião da área protegida, viabiliza a construção do novo porto de recreio numa área da Ria Formosa que é particularmente vulnerável. E é a CCDR Algarve que prorroga uma DCAPE com quase 20 anos indo contra toda a informação científica de que hoje dispomos. A contradição ética é por demais evidente: como podem estes decisores políticos ocupar cargos de defesa e preservação de um ecossistema e, ao mesmo tempo, autorizar ações que o destroem?
A ética ambiental exige uma ação coerente, onde as decisões políticas devem estar alinhadas com os compromissos assumidos em defesa do meio ambiente e do bem-estar da comunidade. Casos como este, de incoerência extrema, comprometem a confiança pública e levantam sérias questões sobre a verdadeira motivação por trás deste projecto. A confiança pública em líderes políticos e em instituições é construída com base na transparência, na consistência e no compromisso com os princípios que se defendem. A população local e as diversas partes interessadas, como ambientalistas, pescadores e cidadãos, podem sentir-se traídas por decisores que, ao assumirem uma postura de proteção ambiental, tomam decisões que contradizem esse compromisso.
Esse tipo de conduta dos decisores políticos também reforça a desconfiança em relação ao processo de gestão ambiental em geral. Quando as autoridades responsáveis por proteger áreas naturais também são aquelas que tomam decisões que prejudicam essas mesmas áreas, a sensação de que os processos de gestão ambiental estão a ser manipulados em benefício de interesses privados, como podem ser, por exemplo, o turismo de luxo ou o mercado náutico, torna-se inevitável. Isto enfraquece a legitimidade das políticas públicas e mina a capacidade de implementar medidas eficazes para a conservação da natureza.
Por outro lado, a Ética da Responsabilidade exige que os decisores políticos considerem as consequências das suas ações para as gerações futuras e para o ecossistema. Ao autorizar a construção do novo porto de recreio num local prejudicial para a Ria Formosa, estes decisores estão a negligenciar o princípio da responsabilidade inter-geracional, pois as ações actuais terão impactos negativos que perdurarão por décadas ou até séculos, afetando a biodiversidade e o equilíbrio ecológico da região.
Esta decisão pode também ser vista como uma violação do Princípio de Justiça Ambiental, que exige uma distribuição equitativa dos custos e benefícios das políticas públicas.
Embora a construção do novo porto possa gerar benefícios económicos imediatos para o sector do turismo e alguns grupos específicos, os custos ambientais – que incluem a perda de biodiversidade, a degradação do ecossistema e o impacto sobre as comunidades locais que dependem da saúde da Ria para suas atividades – são desproporcionalmente altos e recaem sobre aqueles que têm menos poder de decisão.
O compromisso com a sustentabilidade ambiental deve ser inegociável, e isso exige a busca por alternativas que conciliem o desenvolvimento com a preservação do meio ambiente. Neste caso específico a alternativa sustentável existe! Por forma a promover o turismo náutico sem comprometer a integridade da Ria, basta investir-se na requalificação de infra-estruturas existentes, como é o caso do cais comercial de Faro, como já sugerido no estudo científico elaborado pelo CCMar para o efeito.
Afinal de contas para que serve a ciência? De que serve realizarem-se estudos e mais estudos se os resultados dos mesmos não são tidos em conta?! Onde está o bom senso?
Para evitar o que consideram vir a ser uma verdadeira “hecatombe ecológica” três associações ambientalistas regionais - BlueZ C Institute, Civis Cidadania e PROBAAL - interpuseram uma providência cautelar que foi aceite pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, e que parou, para já, o início desta obra.
Valha-nos a iniciativa cidadã!
Por razões logísticas o Café Filosófico de Janeiro realizar-se-á dia 1 de Fevereiro de 2025. Em Português das 16:30 às 18:00. Em Inglês das 18:30 às 20:00. Inscrições e informações: [email protected]
*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
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