Como vem sendo habitual, em Outubro e Novembro o Café Filosófico integra a Festa dos Anos de Álvaro de Campos, o heterónimo pessoano, nascido em Tavira em 1890. Propomos, desta feita, a reflexão sobre as duas primeiras estrofes do poema Sua inconsciência alegre é uma ofensa, que integra a obra Fausto. Uma Tragédia Subjectiva, texto organizado por Teresa Sobral da Cunha, publicado pela editora Presença em 1988.
Sua inconsciência alegre é uma ofensa
Para mim. O seu rir esbofeteia-me!
Sua alegria cospe-me na cara!
Oh, com que ódio carnal e espiritual
Me escarro sobre o que na alma humana
Cria festas e danças e cantigas
E veste ao horror e íntima dor de ser
Esta capa de risos naturais.
Com que alegria minha cairia
Um raio entre eles! Com que pronto
Criaria torturas para eles
Só por rirem a vida em minha cara
E atirarem à minha face pálida
O seu gozo em viver, a poeira que arde
Em meus olhos, dos seus momentos ocos
De infância adulta e toda na alegria!
Este poema incita à reflexão sobre a relação entre a consciência e a alegria, desvelando as tensões entre o indivíduo e o coletivo, entre a alegria superficial e as dores existenciais.
O primeiro verso Sua inconsciência alegre é uma ofensa / Para mim, estabelece imediatamente uma polarização: a alegria do outro, que deveria ser um motivo de celebração, é percebida como uma afronta.
O sentimento de afronta pode surgir da inveja. Inveja-se a causa da alegria do outro, queríamos ser nós os bafejados por essa sorte, por esse motivo, somos incapazes de nos alegrar pelo outro. Porém, Pessoa associa o sentimento de afronta à inconsciência indicando que a felicidade alheia, quando é desprovida de um entendimento mais profundo das mazelas humanas, pode ser não apenas indiferente, mas insultuosa para aqueles que carregam as feridas do mundo. Imagine-se alguém exultando de alegria nos cenários de guerra e fome que assolam o planeta, indiferente à miséria e horror do entorno. Como se sentiriam aqueles que padecem? Esbofeteados ou cuspidos na cara, como o poema sugere? Certamente agredidos por essa alegria que não atenta ao sofrimento e à angústia que permeiam a experiência humana em seu redor. Neste sentido, a ofensa surge como reacção à indiferença com que é tomada a dor de quem sofre.
Oh, com que ódio carnal e espiritual encapsula a dualidade de uma repulsão que é tanto física quanto existencial. O ódio carnal sugere uma reação visceral, quase instintiva, à inconsciência alegre, enquanto o espiritual indica uma resistência mais profunda, ligada à essência do sujeito. Isso revela a luta interna entre a dor e a busca por um sentido de felicidade que não seja simplesmente uma máscara para os horrores da existência.
Esta capa de risos naturais coloca em questão a autenticidade da alegria. Presumimos que a alegria é natural, porém, Pessoa sugere que ela pode servir como uma fachada que esconde a íntima dor de ser. O poeta leva-nos assim a reflectir sobre a condição humana na sua totalidade. A festa, a dança e as cantigas tornam-se, então, não apenas expressões de alegria, mas também instrumentos que podem ocultar a complexidade e o sofrimento inerentes à vida.
E atirarem à minha face pálida / O seu gozo em viver revela a vulnerabilidade do sujeito sofredor. Esta palidez pode ser vista como um símbolo da tristeza, da dor, e do desencanto, enquanto o gozo em viver surge como um contraste doloroso. A alegria alheia é percebida como uma forma de desprezo. Assim, o gozo do outro transforma-se em poeira que arde em meus olhos, uma metáfora poderosa que sugere que a alegria dos outros não apenas ofusca, mas também causa dor; a poeira de momentos alegres, quando imposta sem empatia, acaba por provocar uma afronta.
O verso dos seus momentos ocos / De infância adulta e toda na alegria pode entender-se como uma referência a uma alegria falsa ou superficial. Esses momentos ocos sugerem uma vivência que não possui profundidade, onde a felicidade é construída sobre a negação de experiências mais complexas e dolorosas. Quando a infância é apresentada como um estado de eterna alegria, há uma insinuação de nostalgia por um tempo que não reconhece a realidade da dor e das dificuldades da vida adulta.
Em síntese, a ideia de que a inconsciência alegre é uma ofensa leva-nos a reflectir sobre a natureza da alegria e a responsabilidade que cada um de nós carrega em relação ao mundo que nos cerca. A alegria, na sua essência, é frequentemente vista como um estado desejável. Porém, existirá algum caso, ou casos em que tal não aconteça?
Quando a alegria é cultivada na forma de uma inconsciência, ela pode tornar-se negligente com respeito às questões sociais, políticas e éticas que nos cercam. A inconsciência alegre indica uma alienação dos problemas que afligem a sociedade. É um estado de felicidade superficial, que ignora os males do mundo e se afasta da realidade da dor alheia. Essa forma de alegria, ao ser desprovida de empatia e reflexão crítica, transforma-se numa ofensa não apenas àqueles que sofrem, mas também à própria essência do ser humano, que deve ser capaz de se conectar, compreender e agir em prol do bem-estar coletivo.
É fundamental reconhecer que num mundo repleto de injustiças, desigualdades e sofrimentos, uma felicidade que se mantém à margem do entendimento e da ação, pode ser vista como uma forma de conivência. A partir dessa perspectiva, a alegria que não dialoga com as realidades do entorno não é apenas inconsciente, mas também insensível. Indivíduos que optam por viver numa bolha de contentamento, sem considerar o impacto das suas vidas e ações sobre os outros, contribuem para perpetuar a indiferença e a desconexão. Além do mais, essa inconsciência pode levar-nos a um estado de passividade.
Porém, nada obsta ao tentar manter uma atitude positiva diante das adversidades. A alegria verdadeira não é aquela que ignora a dor, mas sim a que é construída sobre a solidariedade e a compaixão. A verdadeira alegria deveria emergir da capacidade de reconhecer e enfrentar os desafios, de participar activamente na construção de um mundo mais justo e equitativo. Por este motivo a reflexão sobre a relação entre a alegria e a consciência social se torna tão necessária. É um convite a buscar uma alegria que não se restrinja a momentos efémeros de satisfação pessoal, mas que se abra a uma responsabilidade mais ampla. A felicidade plena está enraizada na conexão com os outros e na disposição de entender e aliviar o sofrimento alheio. Assim, em vez de nos deixarmos levar por uma inconsciência alegre que ofende a humanidade, podemos buscar uma alegria que honra a complexidade da vida e os desafios que todos enfrentamos.
O que parece aqui estar ema causa é a ética da alegria. Podemos perguntar: qual é o papel da alegria na vida humana? Ela deve ser celebrada independentemente das circunstâncias, ou deve sempre ser acompanhada por uma consciência da dor que existe ao nosso redor? Este poema de Fernando Pessoa ortónimo, inscreve-se num espaço de tensão, onde a alegria não é um valor absoluto, mas algo que deve ser entrelaçado com a reflexão, a empatia, e a comunhão das vidas alheias.
Assim, este poema transforma-se numa reflexão sobre a necessidade de uma consciência crítica em relação à felicidade, sugerindo que a verdadeira alegria deve ser coadunada com a compreensão da dor, e que a celebração da vida deve incluir uma reflexão honesta sobre as realidades difíceis que todos enfrentamos. A busca por uma alegria que não ignore o sofrimento do outro é uma mensagem poderosa que ressoa profundamente na filosofia existencialista de Pessoa e na condição humana em geral.
Sex 25 Out 18:30 Café Filosófico PT | Casa Álvaro de Campos | 5€
Wed 4 Nov 6.30 pm Café Philo ING | Clube de Tavira | 10€
Inscrições | Registration: [email protected]
*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia