Vivi e trabalhei um número razoável de anos na Bélgica, em França e em Itália. Passei em férias ou por dever de função por muitas dezenas de outros Estados. Excepto em ditaduras ou democracias musculadas e duvidosas, onde o culto da personalidade do líder é levado ao extremo, não me recordo de nenhum país onde se viva em situação de propaganda política permanente em espaços públicos como em Portugal. A sementeira de cartazes gigantes [vulgo “outdoors”] colocados à borla pelos partidos em espaços nobres do tecido urbano está imparável.
Os cidadãos, qualquer que seja a sua opção ideológica, e mesmo que a não tenham, levam involuntariamente com fotografias tratadinhas fótóchópe dos caudilhos partidários, com mensagens que prometem o paraíso ou anunciam o inferno. Vire-se para onde se virar, circule-se em que rotundas seja, espreite-se a qualquer esquina, e lá estão eles e elas com as suas frases feitas de apocalipse ou sorriso falso. Não há descanso por um dia do ano que fosse. Não se respeita nenhum período de defeso entre actos eleitorais. Em nome de sacrossantos direitos fundamentais garantidos na Constituição, na Lei Orgânica nº 1/2009 ou na Lei nº 97/88, a propaganda político-partidária, tenha ou não cariz eleitoral, seja qual for o meio utilizado, é livre e pode ser desenvolvida, fora ou dentro dos períodos de campanha, ou seja, sempre.
Na parafernália actual, não parece existir preocupação nenhuma com os requisitos previstos na lei, e que poderiam condicionar ou moderar a proliferação de cartazes de grande dimensão. É o caso da obstrução de perspectivas panorâmicas, estéticas, ambientais ou paisagísticas. É o caso também da ocupação de rotundas, afectando a segurança rodoviária pela distracção que provoca nos condutores e na redução do campo de visão dos mesmos. As autarquias podem e devem criar regulamentos que ponham ordem na desordem actual. Carlos Moedas, em Lisboa, fê-lo com sucesso, aprovou, regulamentou e libertou zonas centrais e históricas da ocupação partidária, devolvendo-as ao usufruto de toda a população em matéria de estética urbana. A liberdade de expressão e de informação não é um direito absoluto, outros existem que também devem ser salvaguardados.
O abuso político desse direito enquadra-se no excesso de publicidade em geral em todos os aspectos da sociedade contemporânea. É uma presença constante, verdadeiramente sufocante, com o objectivo de influenciar e torturar o nosso comportamento como consumidores de bens serviços e idéias. A invasão do espaço público, bem como da esfera privada dos cidadãos conduz a uma saturação publicitária com graves implicações para a saúde mental e a privacidade dos destinatários, e para a formação da identidade social. Já não é apenas uma questão de cartazes gigantes, de anúncios radiofónicos ou televisivos, ou da nova actividade de “influencers” nas redes sociais. O bombardeio de informações leva à fadiga publicitária, agravada na era digital, onde as plataformas online utilizam algoritmos para direcionar anúncios para públicos específicos, tornando a experiência ainda mais invasiva da privacidade de cada qual.
Os cidadãos são empurrados para consumir produtos que prometem felicidade e sucesso na hora. Mas logo se sentem infelizes na comparação de si próprios com padrões de beleza e estilos de vida inacessíveis ou inadequados à sua condição. Porque a aparência e o estatuto lhes são permanentemente esfregados na cara, multiplicam-se os distúrbios alimentares, a ansiedade e a depressão. É eticamente questionável a forma como a tecnologia nos telemóveis e nos portáteis nos rouba os dados pessoais para fins publicitários e até políticos, numa manipulação feroz e desenfreada daquilo que nos pertence, e de que não é dada qualquer compensação.
O capital individual é usado, e rende lucros estratosféricos a quem o utiliza sem pagar um cêntimo de juros. Tudo isto já é preocupante. Quando chega a campanha eleitoral, o nível de preocupação ultrapassa todas as linhas vermelhas. Sim, somos todos consumidores, mas que o sejamos de forma crítica e consciente. Alfabetização mediática, já!
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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