O médico e Professor Emérito da Universidade do Algarve aceitou igualmente assinar, nesta edição, uma crónica de opinião para a presente edição do POSTAL.
Nela confessa que, nas suas curtas temporadas no Algarve, vive com a constante preocupação, de involuntariamente, poder ir parar ao Hospital de Faro, como doente, se lhe acontecer uma emergência cirúrgica.
P – O caso da médica Diana Pereira, que apresentou queixa à PJ contra dois dos seus colegas de cirurgia por vários “erros/negligências no Hospital de Faro, é inédito em Portugal, mas há 12 anos, em 2011, quando era diretor do Mestrado Integrado em Medicina da Universidade do Algarve, disse ao Barlavento que a ‘cirurgia no Algarve estava num caos completo’.
R – Sim, disse, mas houve algumas melhoras temporárias e há uma diferença grande entre o Hospital do Barlavento e o Hospital de Faro. O caso da corajosa Drª Diana Pereira finalmente revelou ao público a realidade do que se passa naquele serviço. Espero que o seu exemplo dispare a coragem de mais colegas para revelar muitos outros casos de semelhante gravidade até agora desconhecidos do público.
P – Relembre aos nossos leitores o que estava em causa na altura.
R – Em 2011 foi quando enfrentei o problema de colocar os primeiros estudantes em estágios hospitalares e foi quando procurei informar-me sobre a qualidade dos serviços nos hospitais do Algarve. Para estágios em cirurgia decidimos enviar os estudantes para o Hospital do Litoral Alentejano, onde funcionava um serviço de cirurgia excelente.
P – E atualmente, qual é o ponto de situação?
R – Nos últimos dois anos, desde a nomeação do presente Conselho de Administração do Hospital de Faro, a situação piorou drasticamente ao ponto de muitos dos estudantes terem que fazer alguns estágios fora do Algarve por falta de qualidade mínima. Neste momento, a designação de Centro Hospitalar “Universitário” do Algarve (CHUA) é uma hipocrisia, pois o hospital nada tem de “universitário”. Pelo contrário, é hostil à Faculdade. Quem sofre é a população do Algarve que não tem escolha para ir para o privado ou para Lisboa tratar-se.
Juízes favorecem sempre o lado do médico. Ordem dos Médicos, quando atua, fá-lo sempre para defender o médico, nunca defende o doente vítima
P – Possui uma considerável experiência nacional e internacional na área da medicina. A fazer fé nas sentenças de tribunal e nas investigações da Ordem dos Médicos, os casos de “erro/negligência” médica são praticamente inexistentes em Portugal. Em Inglaterra, por exemplo, onde reside atualmente, também não há condenações por “erro/negligência” médica?
R – Há, e algumas ficaram famosas por terem levado a inquéritos muito detalhados e à emissão de novos regulamentos para melhorar os padrões de assistência. Isto é, aprende-se com os erros e procura-se melhorar o sistema. Quando há erros por negligência, os tribunais aplicam penas pesadas aos hospitais que funcionam como fator para o hospital melhorar a segurança do doente. O organismo regulador, o General Medical Council, suspende imediatamente qualquer médico logo que haja uma queixa ou uma suspeita de negligência ou desonestidade. Mesmo antes do problema ser avaliado.
P – E em Portugal?
R – Isso não acontece em Portugal. Fazem-se os erros, geralmente escondem-se as circunstâncias em que aconteceram e nada muda. Não existe uma cultura de não culpar as pessoas, mas sim o sistema que propicia o erro. Os poucos inquéritos que ocorrem geralmente não levam a uma melhoria do sistema, mas apenas servem para as pessoas esconderem melhor os erros no futuro. A situação tem várias vertentes, incluindo o sistema legal. Quando queixas contra negligência de médicos chegam a tribunal, os juízes favorecem sempre o lado do médico. O organismo regulador em Portugal, a Ordem dos Médicos, quando atua, fá-lo sempre para defender o médico, nunca defende o doente vítima.
P – Foi o primeiro diretor do Mestrado Integrado em Medicina da Universidade do Algarve (2008-2013), cujo modelo é reconhecido internacionalmente pela sua excelência. Como se explica que a Faculdade de Medicina da Universidade do Algarve tenha suspendido a colocação dos seus estudantes em estágios no Hospital de Faro?
R – Note que eu não tenho quaisquer poderes executivos na Direção da Faculdade de Medicina (FMCB), sou apenas um Professor Emérito que mantém grande interesse no futuro do projeto que comecei. Para manter a excelência do curso é muito importante que os estudantes façam os estágios clínicos em ambientes de qualidade. A FMCB quer que os estudantes nos seus estágios encontrem tutores que sejam exemplos, “role models”, de bom profissionalismo. Isso é essencial para produzir médicos com qualidade. Faz-se tudo para evitar expor os estudantes a práticas medíocres ou desonestas, a serviços caóticos ou abandalhados. Por isso vai-se a hospitais fora da região, como tem sido feito desde 2011, que oferecem essa qualidade. A FMCB não deve sentir-se “amarrada” a um hospital único, que geralmente tem grande diversidade de qualidade entre serviços. O objetivo é escolherem-se os melhores serviços, onde quer que eles estejam, em qualquer hospital até ao Tejo, para colocar os estudantes nos seus estágios. Note-se que o conceito de “hospital universitário” ou “hospital escolar” onde se concentra todo o ensino, é um conceito que eventualmente vai desaparecer quando os gestores dos cursos estiverem focados na qualidade da aprendizagem.