À Procura da Manhã Clara, de Ana Cristina Silva, é o segundo romance da autora publicado com a chancela Bertrand Editora. Depois de Bela, biografia ficcionada de Florbela Espanca, Ana Cristina Silva volta a combinar realidade e ficção para recontar a história de uma figura que, nos últimos tempos, tem sido também redescoberta, noutros livros, assim como, mais recentemente, numa série de televisão. Ressalve-se portanto que este romance é completamente independente e não deve ser confundido com outras criações.
A portuguesa Annie Silva Pais, filha do último diretor da PIDE, é uma jovem que abandonou tudo pela revolução cubana.
«Não sei até hoje o que foste verdadeiramente na minha vida. Chego a pensar que conheço muito pouco de mim própria, daí as razões de ter sido tão misteriosa para os outros. A minha mãe sempre desejou que eu fosse outra pessoa, ou mesmo que não tivesse nascido. Em qualquer dos casos, para fugir aos valores rígidos da sua educação, em vez de uma personalidade, desenvolvi uma índole de oposição. Sei apenas que continuo a gostar do sonho que me arrastou até ti. Continuas enterrado no meu espírito como uma inesperada aventura, embora as minhas lembranças de ti sejam feitas de minúsculos fragmentos que têm dificuldade em juntar-se numa visão que faça sentido. Nada disso importa agora; há muito que o nosso amor deixou de ter expressão terrena. Em breve, também eu serei apenas o espírito destas palavras e da minha existência restará somente o enigma das suas teias.»
Diz-nos a protagonista, no Prólogo, que ao contrário da mãe que escrevia todas as trivialidades numa agenda, Annie nunca escreveu diários nem descreveu em agendas os seus actos. Mas a certa altura, em criança, começou a redigir cartas como forma de desabafar os seus segredos e emoções. Em adulta, terá começado a guardar as suas cartas numa caixa de sapatos. E é agora, quando sente a morte a rondar, que desenterra as cartas que, de alguma forma, ajudam a pontuar a narrativa que se segue.
À Procura da Manhã Clara alterna assim cartas confessionais, mas nunca enviadas, pontualmente escritas por Annie à mãe, a amantes, a amigas, com uma narrativa, que recua um pouco relativamente às missivas, contada na terceira pessoa, por um narrador omnisciente. O tom narrativo é ligeiro, quase coloquial, conforme desfia os acontecimentos, quase em jeito cinematográfico:
“No final de fevereiro, conduziu-a num daqueles grandes carros americanos ao serviço do Estado a um apartamento. O prédio era relativamente novo, construído a meio da década de cinquenta, e ficava no bairro Vedado, junto ao cemitério chinês. As varandas eram paralelogramas ao comprido, fazendo lembrar o mar, o espaço era pequeno (…) mas representava o início de uma vida.” (p. 130)
A narrativa arranca na Figueira da Foz, em 1958, com o momento em que Annie, adolescente, começa a evidenciar-se pela sua beleza, numa foto publicada no Diário de Notícias, em calções. A beleza e irreverência serão um constante motivo de transtorno para D. Nita Silva Pais (sempre assim designada, ironicamente, pela própria filha, bem como ao longo da narrativa). A tensão e a discórdia que dividem mãe e filha são aliás centrais ao romance, e servem ainda como símbolo de uma luta intergeracional, assim como de um conflito de classes; D. Nita representa uma burguesia vã e fútil, ao passo que Annie se empenha na luta de classes.
Ao longo da sua juventude, acompanharemos os vários percalços de Annie, com alguns namorados. É também pelos olhos dos seus enamorados estrangeiros que Annie ganha noção, ou confirmação, das impressões de Portugal, pela pobreza, a imundice das casas, a tristeza nos olhos das mulheres, o número de mendigos (p. 33). O pai era então director dos Serviços de Fiscalização das Actividades Económicas, um simpatizante de Hitler, que passava os dias num gabinete “a servir a pátria” (p. 53) e bastante susceptível às críticas que lhe fizessem do país. Por volta dos 25 anos, depois de um grande desgosto, Annie casa-se, impulsivamente, com um diplomata suiço, na esperança de poder fugir a um Portugal “demasiado cinzento” (p. 22). O seu sonho concretiza-se, de forma inimaginável, quando acompanha a viagem do marido na sua colocação em Cuba.
Aí, apaixonar-se-á por Che, uma paixão que tem tanto de fantasiosa como de intensa, e deixa a sua antiga vida para se dedicar à revolução cubana.
Com o passar dos anos, Annie destaca-se pelo seu trabalho como tradutora e intérprete, assim como pela devoção à causa. Vive igualmente com grande liberdade a sua vida sentimental, dando-nos conta de uma considerável galeria de amantes. Torna-se um membro de confiança da equipa de Fidel Castro, à qual pertenceu até morrer, e apenas regressou a Portugal em 1975, quando o pai, Armando Silva Pais, último diretor da PIDE, é preso na sequência da Revolução do 25 de Abril.
É também nessa segunda parte do livro que a narrativa se torna mais envolvente, ao contrapor a viragem política de Portugal, com o fim do fascismo, os ventos de mudança que varrem o país, e a comparação com Cuba.
Ao regressar ao seu país, Annie vem ainda incumbida de uma missão: agir, de certo modo, como espia, enviando relatórios para o governo cubano do que por aqui se passava, nomeadamente durante a instabilidade de 1975.
Ana Cristina Silva nasceu em Lisboa e é professora no ISPA – Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida na área de Aquisições Precoces da Linguagem Escrita, Ortografia e Produção Textual. Autora de quinze romances e de um livro de contos, foi três vezes finalista do Prémio Literário Fernando Namora (2011, 2012 e 2013), que venceu em 2017 com o romance A Noite Não é Eterna. Recebeu também o Prémio Literário Urbano Tavares Rodrigues pelo romance O Rei do Monte Brasil, em 2012.