“O mito é a história sagrada, a narrativa que nos revela o modo como o mundo, a humanidade e as coisas adquiriram a sua forma actual. (…) O mito é a fonte primordial do pensamento humano e do comportamento humano em todas as suas formas…”.
in “Mito e Realidade” Mircea Eliade, (1963).
“A primeira tarde portuguesa”, designação cuja paternidade foi discutida, é uma tela de grandes dimensões do pintor Acácio Lino (1878-1956), realizada em 1922, que se encontra exposta no Palácio de São Bento, a batalha de São Mamede travada a 24 de Junho de 1124.
A expressão iniciática foi atribuída a Alexandre Herculano, ao medievalista José Mattoso que a utilizou em Guimarães numa conferência em 1978 comemorativa dos 850 anos da batalha, também Manuel Alegre em 2003 a introduziu num poema, uma “belíssima expressão que podia ser um verso”.
A fundação de um País não ocorre por milagre, numa manhã, tarde ou noite, resulta de um processo longo, contínuo, evoluindo por vezes ao longo de séculos
A história e cultura medievais correspondem a um convencionado período de cerca de mil anos, da tomada de Roma pelos bárbaros (476 d.C.) até à queda da Constantinopla bizantina (1453), percorrendo diferentes tempos, conjunturas e acontecimentos.
A descrição das origens de Portugal acolhe versões mitológicas e factuais divulgadas pela cronística, pelas ordens religiosas, crenças populares, diversas e não coincidentes, nelas se misturam real e ficcional com evidente intenção sobrevalorizadora.
Acontecimentos sobrenaturais, segundo a tradição, intensos e breves, determinaram a existência do reino e de uma nação soberana, com poder legitimado por Deus e o Papa.
A nobreza borgonhesa criou uma nova realidade política, hoje das mais antigas do continente. Valores e costumes, linhagens de poder familiares, são alguns domínios de investigação na história cultural onde aparecem incorporadas crenças fundacionais.
Serão quatro, de forma abreviada, os episódios na génese do reino português.
O primeiro é a batalha de São Mamede (1128), quando D. Teresa derrotada amaldiçoou o filho Afonso Henriques que a terá mantido presa (?), narrativa não provada. O conto de Alexandre Herculano o “Bispo Negro”, narra que D. Bernardo bispo de Coimbra deu ordem a D. Afonso para libertar a mãe, o que terá recusado. Por determinação do Papa Afonso Henriques e a cidade de Coimbra foram excomungados, o futuro rei respondeu nomeando o “Bispo Negro”, Suleima ou Martinho, algo nunca visto até então.
A maldição caiu sobre Afonso Henriques em Badajoz (1169), foi derrotado e fracturou o fémur, nunca recuperou, ficou inválido, prisioneiro dos leoneses, libertado após negociações…
O segundo momento é o da batalha de Ourique (1139). Na noite anterior ao recontro Jesus Cristo apareceu a Afonso Henriques, transmitindo ao monarca “in hoc signo vincit!”/ «mediante este sinal vencerás!». Na lenda os “cinco reis mouros” foram derrotados, uma das versões é que as cinco quinas passaram a estar inscritas desde D. Sancho I no escudo nacional.
O torneio de Arcos de Valdevez (1140) é o terceiro dos mitos, um recontro em forma de justa de cavaleiros para evitar o enfrentamento de Afonso VII de Leão com as forças de Afonso Henriques. Os cavaleiros portugueses saíram vencedores, exigindo a promessa de acordo de paz com reconhecimento da independência de Portugal em Zamora. No campo da batalha ter-se-á encontrado um “santo lenho”, fragmento da cruz do martírio de Jesus Cristo, depositado num sacrário na Igreja Matriz de Grade.
Finalmente, no Tratado de Zamora (1143), Henrique VII reconhece a independência de Portugal, confirmada três décadas mais tarde pelo Papa Alexandre III na bula “Manifestis Probatum” (1179) a vassalagem de Afonso Henriques é prestada ao chefe da Igreja e não a Afonso VII…
Qual das datas representa o momento da fundação de Portugal? Nenhuma.
Portugal é uma criação medieval, originada pelo crescimento demográfico dos séculos X-XII que exigia mais terras, agricultura familiar pressionada e incapaz de responder às exigências feudais, disputas entre a nobreza de além Douro, pelo movimento das ordens militares para sul, enfraquecimento do poder muçulmano por revoltas internas e as taifas.
A fundação de um País não ocorre por milagre, numa manhã, tarde ou noite, resulta de um processo longo, contínuo, evoluindo por vezes ao longo de séculos e que os mitos se encarregam de simplificar. A “primeira tarde portuguesa” é uma ficção poética.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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