“Camões, por si, vale uma literatura inteira”.
August Wilhelm von Schlege, filólogo alemão do séc. XVIII- XIX, tradutor de Camões.
“A expressão ir chatear o Camões é usada para afastar, de forma humorada, alguém que nos está a incomodar ou aborrecer, sugerindo que encontre outra pessoa para importunar”
In “Dicionário da Língua Portuguesa” da Academia das Ciências.
Em oito séculos de nacionalidade dois escritores poetas atingiram projeccão universal, Luís de Camões (1524/25-1579 /80) e Fernando Pessoa (1888-1935).
Portugal assinala os 500 anos do nascimento de Camões. Da obra não existem originais, as hipotéticas versões desapareceram, na Torre do Tombo guardam-se os alvarás da libertação, da partida para a Índia, da impressão dos Lusíadas e das tenças atribuídas
Das biografias, a de Camões é de mais difícil confirmação, não por ter vivido no século XVI, mas por serem escassos os registos de percurso, sabe-se que regressou a Lisboa com cerca de 50 anos depois de viver em Marrocos, Moçambique, Índia, China e outros lugares.
A 10 de Junho um quase desconhecido cidadão simboliza a Nação e a universalidade da língua portuguesa, resultado da obra património, lírica, sonetos, dramaturgia, epopeia…
Em 1880, iniciativa de republicanos e imprensa, constituiu-se uma Comissão para celebrar o Terceiro Centenário da Morte de Camões, presidida por Ramalho Ortigão, integrava Teófilo Braga, Eduardo Coelho, Luciano Cordeiro, Pinheiro Chagas entre outros, teve apoio de diversas instituições e em 1886 foi colocada a sua estátua num largo do Chiado.
O Estado Novo inspirado nas ideologias do nacionalismo nazi-fascista fez do 10 de Junho o “Dia da Raça”, com desfile militar, condecorações, maior dramatismo entre 1961 e 1974.
O mais destacado prémio literário de língua portuguesa tem hoje o seu nome.
Os mistérios da vida e morte de Luís de Camões permanecem insolúveis.
Não se conhece local de nascimento, nem como obteve tão sólida cultura clássica, se estudou em Coimbra, onde o tio era deão na Sé, porque não consta o seu nome como aluno? A morte é outro enigma, talvez a 10 de Junho de 1580, o corpo hipoteticamente sepultado na Igreja de Sant’Ana desapareceu com o terramoto de 1755. Um amigo mandou inscrever numa lápide exterior: “Aqui jaz Luís de Camões Príncipe dos Poetas do seu tempo. Viveu pobre e miseravelmente e assim morreu, ano de 1579. Esta campa lhe mandou aqui pôr D. Gonçalo Coutinho, na qual se não enterrará pessoa alguma.” Certo que o mausoléu nos Jerónimos não contém os seus restos mortais.
Foi descrito como aventureiro, mulherengo e brigão, preso no Tronco em 1532 por agressão a Gonçalo Borges, encarregado das cavalariças reais, libertado “por ser mancebo pobre que vai servir à Índia”, onde terávivido entre 1553 e 1569. Sátira anónima sobre a corrupção na Índia levou Camões à prisão, enviado para Macau diz a lenda que escreveu “Os Lusíadas” numa gruta. Do seu aspecto físico subsiste um “retrato pintado a vermelho” de Fernão Gomes, pintor maneirista espanhol, que foi pintor régio de Felipe II.
Diogo do Couto, guarda-mor do Tombo de Goa, que na “Santa Clara” com Camões regressou a Lisboa em 1570, revelou o roubo de uma obra provavelmente relevante: “Em Moçambique achamos aquele Príncipe dos Poetas de seu tempo, meu matalote e amigo Luís de Camões, tão pobre que comia de amigos, e, para se embarcar para o reino, lhe ajuntamos toda a roupa que houve mister, e não faltou quem lhe desse de comer. E aquele inverno que esteve em Moçambique, acabando de aperfeiçoar as suas Lusíadas para as imprimir, foi escrevendo muito em um livro, que intitulava Parnaso de Luís de Camões, livro de muita erudição, doutrina e filosofia, o qual lhe juntaram (roubaram). E nunca pude saber, no reino dele, por muito que inquiri. E foi furto notável.”
A semi-pobreza, justificou-a Camões por “erros, má fortuna e amor ardente”. Os relatos da miséria dos últimos anos de vida indiciam não possuir meios de subsistência.
Autorizada a edição dos Lusíadas, sobre os cantos “problemáticos” escreveu o censor do Santo Ofício “não tivemos por inconveniente ir esta fábula dos Deuses na obra…, ficando sempre salva a verdade de nossa santa fé, que todos os Deuses dos Gentios são Demónios».
António José Saraiva e Óscar Lopes na “História da Literatura Portuguesa”referem que “nenhum outro soube realizar a síntese entre a tradição literária portuguesa ou peninsular e as inovações introduzidas pelos italianizantes”.
Portugal assinala os 500 anos do nascimento de Camões. Da obra não existem originais, as hipotéticas versões desapareceram, na Torre do Tombo guardam-se os alvarás da libertação, da partida para a Índia, da impressão dos Lusíadas e das tenças atribuídas.
Das duas edições de 1572 de “Os Lusíadas”, impressas por António Gonçalves, sobreviveram 34 exemplares em Portugal, Brasil, Espanha, Itália, França e Alemanha. Camões referiu com mágoa o desinteresse das autoridades e dos contemporâneos pela sua obra: “No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho / destemperada e a voz enrouquecida, / e não do canto, mas de ver que venho / cantar a gente surda e endurecida. / O favor com que mais se acende o engenho / não no dá a pátria, não, que está metida /no gosto da cobiça e na rudeza / de uma austera, apagada e vil tristeza”.
Não chegou a saber que sobreviveu a todos os regimes e foi invocado de acordo com as conveniências, os Lusíadas de obrigatória leitura escolar, que na realidade representa o que “por obras valerosas se foi da lei da morte libertando”, um Hiper-Camões.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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