A venda de quotas em imóveis herdados continua a ser uma fonte frequente de conflitos familiares, sobretudo quando os acordos são antigos e feitos fora do circuito formal. Um recente acórdão da Audiencia Provincial de Málaga voltou a colocar este tema no centro da discussão jurídica, ao clarificar até que ponto um contrato privado pode produzir efeitos e impedir, anos mais tarde, a divisão de uma casa herdada.
Esta decisão envolve dois irmãos e a casa que ambos herdaram após a morte da mãe. O conflito surgiu quando a irmã tentou forçar judicialmente a divisão do imóvel, apesar de existir um acordo anterior em que tinha vendido a sua parte, de acordo com o jornal digital espanhol Noticias Trabajo.
Em causa estava um contrato privado assinado em 2002, através do qual o irmão alegava ter comprado à irmã os 25% da casa que lhe pertenciam. O acordo previa o pagamento dessa quota, o que, segundo o tribunal, foi feito ao longo de vários anos. Apesar disso, já muitos anos depois, a mulher avançou com uma ação judicial para forçar a divisão e venda do imóvel, defendendo que continuava a ser coproprietária e que o contrato não produzia efeitos legais.
Primeira instância deu razão à irmã
O caso começou por ser apreciado pelo Juízo de Primeira Instância n.º 1 de Antequera. O tribunal considerou que o contrato privado não era suficiente para produzir efeitos reais sobre o imóvel e declarou a dissolução do compropriedade existente. Como consequência, ordenou a venda da casa então herdada em hasta pública, atribuindo 25% do valor à irmã e 75% ao irmão, reabrindo assim um conflito que parecia resolvido desde 2002.
Audiencia Provincial revê a decisão
A decisão viria a ser alterada em segunda instância. No acórdão de 14 de março deste ano, a Audiencia Provincial de Málaga concluiu que a venda da quota-parte da irmã tinha sido válida e eficaz.
Os juízes consideraram provado que, à data do contrato, a mulher já era proprietária plena dos 25% herdados da mãe e que recebeu efetivamente o preço acordado, através de pagamentos sucessivos realizados ao longo dos anos, de acordo com a mesma fonte.
Cláusula nula não invalida o contrato
O contrato incluía ainda uma referência a direitos sobre a futura herança do pai, cláusula que foi declarada nula por incidir sobre herança futura, nos termos do artigo 1271 do Código Civil espanhol.
No entanto, aplicando a doutrina da nulidade parcial e o princípio da conservação do negócio jurídico, o tribunal entendeu que essa nulidade não contaminava a parte válida do contrato, relativa à venda da quota já adquirida da casa da mãe.
Falta de escritura pública não foi decisiva
Outro ponto central da decisão foi a ausência de escritura pública. A Audiencia rejeitou que essa falta fosse suficiente para invalidar uma transmissão que já estava perfeccionada e integralmente paga. De acordo com a jurisprudência do Tribunal Supremo espanhol, quando existe acordo de vontades, pagamento do preço e entrega do bem ou exercício de poderes de proprietário, a venda produz efeitos entre as partes, mesmo sem escritura.
O tribunal valorizou ainda o facto de o irmão ter atuado, durante anos, como único proprietário do imóvel, ocupando-o, suportando as despesas e assegurando a sua manutenção, sem qualquer oposição da irmã. Esta conduta, de acordo com a mesma fonte, foi considerada coerente com a existência de uma venda anterior e incompatível com a tese de que a mulher continuava a ser coproprietária.
Divisão da casa foi considerada infundada
A Audiencia concluiu que a irmã já não tinha qualquer direito sobre o imóvel e que a sua pretensão de divisão e venda carecia de fundamento legal.
Segundo o acórdão, aceitar essa posição implicaria um enriquecimento injusto, uma vez que a mulher já tinha recebido o valor correspondente à sua quota e pretendia agora beneficiar novamente da venda da casa.
Obrigação de outorgar escritura
Como consequência, o tribunal declarou válida a venda dos 25% da casa herdada da mãe e condenou a mulher a outorgar a respetiva escritura pública no prazo de dez dias após o trânsito em julgado da sentença. A decisão admitiu ainda a possibilidade de recurso de cassação para o Tribunal Supremo, de acordo com o Noticias Trabajo.
E se acontecesse em Portugal?
Em Portugal, situações semelhantes são reguladas principalmente pelo Código Civil (CC). A venda de bens imóveis exige escritura pública ou documento particular autenticado para produzir efeitos, nos termos do artigo 875.º do CC. No entanto, entre as partes, um contrato-promessa (art. 410.º) ou um contrato particular pode gerar obrigações válidas, desde que haja acordo, objeto lícito e causa legítima e estejam preenchidos os requisitos legais.
A jurisprudência portuguesa também admite a nulidade parcial dos contratos, prevista no artigo 292.º do Código Civil, permitindo que a parte válida do negócio se mantenha se puder subsistir autonomamente sem a cláusula nula.
Relativamente à divisão de coisa comum, o artigo 1412.º estabelece que qualquer comproprietário pode exigir a divisão, exceto se já não tiver essa qualidade. Se se provar que a quota-parte foi validamente transmitida e paga, o antigo titular deixa de ter legitimidade para pedir a divisão. Por fim, o princípio do enriquecimento sem causa, consagrado no artigo 473.º do Código Civil, impede que alguém receba duas vezes pelo mesmo direito, sendo frequentemente invocado pelos tribunais portugueses em litígios envolvendo vendas informais de imóveis entre familiares.















