Uma decisão judicial recente em Espanha veio clarificar os limites do conceito de “recheio doméstico” no âmbito do Imposto sobre Sucessões, com impacto direto no valor do imposto a pagar por herdeiros quando a herança é composta maioritariamente por ativos financeiros. O caso reacende o debate sobre até onde pode ir a Autoridade Tributária no cálculo da base tributável.
O Tribunal Superior de Justiça da Andaluzia deu razão a uma herdeira e anulou a liquidação do Imposto sobre Sucessões feita pela Administração Fiscal, ao considerar indevida a inclusão de ações, participações sociais e dinheiro no cálculo do recheio doméstico sobre a herança.
A decisão resulta de um recurso apresentado contra uma liquidação que já tinha sido validada pelo Tribunal Económico-Administrativo Central, mas que, segundo o tribunal, inflacionava artificialmente a base tributável da herança, de acordo com o jornal digital espanhol Noticias Trabajo.
Uma herança milionária e um cálculo contestado
Em causa estava uma herança com um valor global de 9.372.391,59 euros, deixada pelo pai da herdeira em questão. A Autoridade Tributária aplicou automaticamente a percentagem legal de 3 por cento prevista no artigo 15.º da Lei espanhola do Imposto sobre Sucessões e Doações, fixando o valor do recheio doméstico em 277.041,38 euros.
No entanto, a maior parte do património herdado correspondia a participações em entidades no valor de 7.602.759,42 euros, bem como a depósitos bancários. A herdeira contestou desde o início que estes ativos pudessem ser considerados recheio doméstico.
A defesa sustentou que a Administração incluiu bens que não se enquadram legalmente nesse conceito, uma vez que não têm qualquer ligação ao uso pessoal, à habitação ou ao quotidiano familiar, mas sim natureza puramente financeira, de acordo com a mesma fonte.
Jurisprudência do Supremo trava critério automático
O Tribunal Superior de Justiça da Andaluzia deu razão a este entendimento, sublinhando que o dinheiro e os títulos financeiros não devem integrar o recheio doméstico e, por isso, devem ser excluídos do respetivo cálculo. Na fundamentação, os juízes apoiaram-se no artigo 15.º da Lei espanhola do Imposto sobre Sucessões e Doações, que prevê a avaliação do recheio doméstico em 3 por cento do valor da herança, salvo prova em contrário.
Para afastar o critério automático usado pela Autoridade Tributária, o tribunal recorreu à jurisprudência do Tribunal Supremo, citando uma decisão de 20 de setembro de 2022. Nessa sentença, o Supremo definiu que o recheio doméstico abrange apenas bens móveis afetos ao uso pessoal ou ao serviço da habitação.
Segundo essa jurisprudência, ficam expressamente excluídos “o dinheiro, os títulos-valores e os valores mobiliários”, por não terem “qualquer ligação com as funções essenciais da vida ou com o desenvolvimento da personalidade”.
Nova liquidação obrigatória, mas decisão ainda não é definitiva
Aplicando esta doutrina ao caso concreto, o tribunal concluiu que não fazia sentido calcular o recheio doméstico com base num património constituído quase exclusivamente por ativos financeiros. A decisão, de acordo com o Noticias Trabajo, determinou a anulação parcial da liquidação do imposto, obrigando a Administração a emitir uma nova liquidação que exclua os mais de 7,6 milhões de euros em participações e o dinheiro em numerário da base de cálculo.
Apesar de favorável à herdeira, a sentença ainda não transitou em julgado, sendo possível a interposição de recurso de cassação para o Tribunal Supremo.
Enquadramento legal em Portugal
Em Portugal, o enquadramento fiscal das heranças é distinto do que acontece noutros países europeus, nomeadamente no que respeita ao conceito de recheio doméstico e à forma como os bens são tributados nas transmissões gratuitas.
O antigo Imposto sobre Sucessões e Doações foi revogado, aplicando-se atualmente o Imposto do Selo às transmissões gratuitas de bens, nos termos da verba 1.2 da Tabela Geral do Imposto do Selo, com uma taxa geral de 10 por cento. Existem, no entanto, isenções relevantes. As transmissões a favor do cônjuge, do unido de facto, de descendentes ou de ascendentes não estão sujeitas a este imposto, ficando fora da incidência da taxa prevista.
Ao contrário do que sucede noutros ordenamentos jurídicos, Portugal não prevê uma regra automática equivalente à aplicação de uma percentagem fixa sobre a herança para efeitos de cálculo do chamado recheio doméstico. Não existe, por isso, uma presunção fiscal semelhante à dos 3 por cento aplicada noutros países.
O conceito de recheio surge sobretudo no plano do direito civil. O Código Civil associa-o ao mobiliário e aos objetos ou utensílios destinados ao conforto, ao serviço e à ornamentação da habitação. Nesse enquadramento, dinheiro, depósitos bancários, ações e outros valores mobiliários não são considerados recheio doméstico em sentido civil. Isso não significa, contudo, que estes ativos fiquem automaticamente excluídos da herança para efeitos fiscais.
















