É a maior encomenda de computadores portáteis alguma vez anunciada em Portugal – mas só se cumprir uma missão quase impossível e abrir bastante os cordões à bolsa, o Governo conseguirá cumprir a promessa de entregar computadores a todos os alunos dos 12 anos da escolaridade obrigatória até ao final do presente ano letivo, em junho.
Na primeira fase de pandemia, o primeiro-ministro António Costa prometeu entregar computadores a todos os alunos e professores em setembro passado. O que perfaz um total de 1,2 milhões de máquinas. O Governo garantiu a compra de 435 mil portáteis, mas é quase certo que não vai conseguir chegar a 1,2 milhões de computadores no ano letivo de 2020/2021. Para cumprir essa promessa o Governo teria de lançar um megaconcurso até março – e mesmo assim, não seria garantido que conseguiria superar a escassez de componentes e meios de expedição, a inflação registada na indústria das tecnologias e a renitência das marcas em aceitar os preços propostos pelos concursos públicos.
No caso de adiar essa meta para o início do próximo ano letivo, a adjudicação dos 735 mil computadores que faltam não só terá de superar a pressão a que os fabricantes de componentes de eletrónica têm vindo a ser sujeitos por todos os países e empresas que têm vindo a engrossar encomendas computadores para atividades relacionadas com o teletrabalho e a telescola, como ainda terá de concluir o concurso de adjudicação até maio.
O assunto é especialmente delicado para a maioria das grandes marcas de informática. Além das proporções inéditas das encomendas envolvidas, o Estado é um dos maiores clientes históricos em Portugal. E a maioria das grandes marcas prefere não se pronunciar oficialmente – mas o Expresso conseguiu apurar que num concurso concluído em dezembro com vista à encomenda de 335 mil kits com portáteis, auriculares (geralmente conhecidos por “phones”), mochila e modem para acesso à Internet através de redes móveis, já houve marcas sonantes que optaram por não apresentar propostas.
Nas diferentes fontes contactadas sob anonimato há quem garanta que os preços fixados neste segundo concurso gerido pela Secretaria Geral da Educação e da Ciência poderiam refletir-se em “margens negativas de quase 20%”. O que significaria que, pelas contas destas marcas, quase um quinto do custo de cada máquina seria prejuízo em vez de lucro.
“Duvido que alguma marca aceite participar num próximo concurso caso se mantenham os preços do último concurso”, diz fonte que costuma acompanhar o sector. “E se conseguirem ter marcas a concorrer, então as pessoas que organizam o concurso serão logo contratadas para trabalhar noutro sítio, pois conseguiram o que ninguém consegue”, diz com sarcasmo essa mesma fonte sob anonimato.
O primeiro-ministro pode ter tomado a dianteira europeia ao anunciar a intenção de entregar 1,2 milhões de computadores pelas escolas portuguesas ainda no início do ano letivo 2020/2021 com um investimento de 400 milhões de euros suportado pelos cofres de Bruxelas, mas poderá ter de deparar-se com uma conjuntura internacional que tornou o cumprimento dos prazos um incógnita – ou mesmo uma impossibilidade, como se confirmou com o arranque do atual ano letivo.
Fontes da indústria comparam o que hoje se assiste na informática ao cenário registado com a venda de máscaras protetoras – e em ambos os casos, este cenário de escassez tem por epicentro a indústria asiática em geral, e chinesa em particular. Com a procura a aumentar durante a primeira fase pandémica, os preços das máscaras dispararam na inversa proporção da escassez. Atualmente, os preços das máscaras já se encontram estabilizados – mas esse regresso à normalidade ainda deverá demorar a alcançar na indústria informática, que só agora poderá estar a alcançar o pico da escassez provocada pelo aumento da procura de componentes de eletrónica. A esse fator junta-se as disrupção geradas pelos confinamentos, e a dificuldade e a inflação galopante dos preços de aluguer de contentores disponibilizados pelos armadores que garantem a expedição por via marítima.
Alguns exemplos recolhidos junto de quem costuma encomendar componentes ajudam a ilustrar o cenário atual. Os ecrãs LCD, que estão presentes todos os portáteis e que serão os que registam maior escassez na atualidade, deixaram de ser transacionados a 22 dólares (cerca de 18 euros) para passarem a ser comprados pelas marcas de informática aos fabricantes a 45 dólares por unidade (quase 40 euros). Componentes de placas-mãe (as motherboards, que funcionam como “esqueleto” do computador) que anteriormente custavam 50 cêntimos são atualmente comercializados a 6 ou 7 dólares (entre quase 5 e quase 6 euros). Nas memórias, os preços terão aumentado na ordem dos 20%. E em geral há quem estime que da segunda metade do ano passado e a atualidade o preço dos componentes da informática refletiu aumentos de preços na ordem dos 30%.
“A indústria chinesa é conhecida por produzir a custos reduzidos, mas isso só é verdade quando não há escassez”, refere uma fonte sob anonimato. “Porque é que os fabricantes de computadores haveriam de preferir um concurso levado a cabo pelo Estado Português em que ganham zero, quando podem ter lucros bem maiores a vender para a Alemanha, Espanha e outros países que também estão a fazer encomendas ainda maiores?”, atira outra fonte sob anonimato.
Além de a procura ter aumentado de súbito, o fabrico e o fornecimento de computadores depara-se com uma data que, todos os anos, deixa parte da indústria mundial em suspenso: a entrada no novo ano chinês, que tem lugar a 12 de fevereiro. Quase toda a indústria chinesa interrompe ou restringe grande parte das atividades na semana que precede essa data, e na semana que se segue. E o regresso à plenitude, por vezes, sofre uma inércia nas semanas seguintes. O que leva a uma disrupção de três semanas a um mês na cadeia de abastecimento, que poderá ocupar a quase totalidade o mês de fevereiro.
Mesmo sem ter em conta os atrasos provocados pelo ano novo chinês, o Governo terá de ter em conta o seguinte fator, caso pretenda mesmo garantir a encomenda e a entrega de 735 mil computadores ainda durante este ano letivo: Este volume de encomendas pressupõe sempre uma espera de cerca de cerca de três meses.
“O concurso público até pode ser rápido. Em poucas semanas se consegue concluir esse concurso, como se viu nos dois primeiros que foram feitos no final do ano passado. Mas a preparação de encomendas com este volume demora sempre entre 80 e 90 dias”, refere fonte do sector. Uma outra fonte consultada pelo Expresso confirmou prazos de espera similares, que também rondam os três meses, quando se trata de encomendas tão volumosas.
Mesmo sem ter em conta os efeitos do novo ano chinês, os três meses de preparação de encomendas deixam uma margem de manobra especialmente estreita: o Governo terá de lançar até março o novo concurso, caso pretenda mesmo garantir que conclui a entrega dos 735 mil computadores que faltam até junho. E este cenário já parte do princípio que os valores propostos são convidativos ou que as marcas aceitam participar nos concursos com os valores propostos pelo Governo – o que está longe de ser um dado garantido.
“A probabilidade de o Governo conseguir entregar todos esses 735 mil computadores até junho é muito-muito reduzida, ou quase nula. E para entregar essas máquinas até setembro, com o arranque do novo letivo, o Governo terá de concluir o concurso até meados de maio”, refere uma das fontes contactadas pelo Expresso.
OS DOIS PRIMEIROS CONCURSOS
Durante os atos concursais realizados no final do ano passado, o Ministério da Educação garantiu um total de 435 mil computadores portáteis, que serão entregues aos alunos, mas deverão pertencer às escolas. Numa primeira consulta ao mercado que ficou concluída em novembro, o Ministério da Educação investiu mais de 24 milhões de euros para garantir 100 mil kits com computadores a alunos das famílias mais carenciadas.
Estes kits estão repartidos por três categorias: uma primeira para o Ensino Básico com um custo unitário de 187 euros; uma segunda para o Secundário com custo unitário de 275 euros; e uma terceira para alunos do Secundário e professores com preços de 320 euros.
Cada categoria tem características técnicas e dimensões específicas. Claranet (com um fornecimento avaliado em 5 milhões de euros); Meo (com um lote de 8,1 milhões de euros e em parceria com a JP.IK); e a Inforlandia, (com um fornecimento de cerca de 11 milhões de euros) foram os fornecedores que suportaram esta primeira vaga de encomendas.
No Portal Base é possível confirmar que as encomendas foram processadas por ajuste direto.
Os restantes 335 mil kits com computadores foram adjudicados com valores inferiores num segundo concurso concluído em dezembro, mas que tem como prazo limite de entrega 25 de março de 2021. No caso de terem sido seguidos os valores de referência que constam no caderno de encargos esta encomenda ascende a 83,861 milhões de euros.
Os 335 mil computadores foram repartidos em nove lotes criados a partir do “cruzamento” de regiões e das três categorias de kits. Esses lotes foram distribuídos através de concurso a três fornecedores: A Inforlandia, que detém a marca Insys, garantiu o fornecimento de cerca de 144 mil computadores; a parceria entre JP.IK e a Informantem garantiu o fornecimento de cerca de 85 mil computadores; e a parceria entre Meo e Lenovo garantiu um total 105 mil computadores.
Estes números foram obtidos de forma oficiosa junto de fontes do sector das tecnologias e da Educação. Os resultados do concurso ainda não foram publicados.
O Ministério da Educação não respondeu às questões do Expresso até à data de publicação deste texto.
Em conferência de imprensa realizada ao início da noite de quinta-feira, Tiago Brandão Rodrigues, ministro da Educação, garantiu que os computadores em causa seriam entregues brevemente (o concurso determina como prazo máximo 25 de março).
Este segundo concurso público para a encomenda de 335 mil computadores tinha como preços de referência 175 euros para cada kit do Ensino Básico, 255 euros para cada um dos kits do Secundário, e 305 euros para cada kit da categoria que tanto serve para alunos do Secundário como para professores. O que perfaz o já referido investimento de 83,861 milhões de euros.
No sector da informática, há quem garanta que o concurso só foi possível depois de Intel e Microsoft terem aceitado rever os custos de sistemas operativos e processadores. Quem conhece a indústria garante que o concurso deixa uma margem muito reduzida para o lucro às poucas marcas que conseguiram dar resposta à encomenda – e só será proveitoso pela escala envolvida, ou como forma de marcar posição no mercado, através da participação em projetos de âmbito nacional.
O facto de já ter conseguido captar o interesse de fornecedores de informática nos dois primeiros concursos pode revelar-se um trunfo negocial acrescido para o Governo. Mas será que resulta?
Notícia exclusiva do nosso parceiro Expresso