O primeiro convite para colaborar neste jornal surgiu há 10 anos, primeiro na rubrica “Patrimónios” onde partilhei o resultado de algumas das minhas investigações na área do Património Cultural Imaterial (PCI).
Depois a colaboração passou para o género “crónica” e a rubrica passou a intitular-se “Marca d’Água”.
Neste novo ano a rubrica passará a intitular-se “Diálogos (in)esperados” e será o resultado de conversas que, espontâneas ou agendadas, terão o Algarve como pano de fundo. Região onde este jornal é editado e à qual as duas partes do diálogo têm ligação.
A primeira edição destes “Diálogos (in)esperados” resulta de uma conversa que decorreu através do Zoom com o ensaísta e professor universitário Guilherme d’Oliveira Martins, que é actualmente administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian e que sempre tem dado especial atenção ao Algarve.
Foi presidente do Centro Nacional de Cultura (2002–2016), coordenou em Portugal o Ano Europeu do Património Cultural (2018) e presidiu no Conselho da Europa à redacção da Convenção de Faro sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea (2005).
Foi deputado independente à Assembleia da República durante sete legislaturas, Secretário de Estado da Administração Educativa (1995–1999), Ministro da Educação (1999–2000), Ministro da Presidência e das Finanças (2000–2001) e Presidente do Tribunal de Contas (2006–2015).
A grande riqueza do Algarve em termos de Património Cultural Material e Imaterial foi o mote da conversa, que nos levou até à Convenção de Faro, uma vez que se trata de um relevante documento que relaciona o Património Cultural Material e Imaterial, a Paisagem, o Património Digital e a Criação Contemporânea.
O texto da Convenção apresenta o património cultural como um recurso importante para o desenvolvimento humano, para a valorização da diversidade cultural e a promoção do diálogo intercultural mediante um modelo de desenvolvimento económico fundado no princípio de utilização sustentável dos recursos.
Falámos de um outro Algarve rico em tradições, usos e costumes e dos saberes das pessoas idosas da serra. Agostinho da Silva foi recordado por defender a troca de saberes, intimamente ligada ao processo de aprendizagem, independentemente dos graus de escolaridade.
“O que distingue um país rico de um país pobre é a aprendizagem e o mesmo também se aplica no caso de uma região pobre e uma região rica”.
A importância do aprender e o papel das mulheres na aprendizagem é um tema local e universal, aliás, está expresso na Declaração Mundial sobre Educação para Todos: satisfação das necessidades básicas de aprendizagem, que foi assinada em Jomtien, na Tailândia, em 1990.
“O filho de uma mulher alfabetizada raramente é analfabeto. Alfabetizar as mulheres é garantir a alfabetização das gerações futuras”. Aqui o meu interlocutor referiu os algarvios Maria Aliete Galhoz e José Ruivinho Brazão que, nas suas pesquisas, valorizam os saberes das mulheres analfabetas e os seus processos de aprendizagem e, por sua vez, a transmissão desses saberes.
Referiu ainda a escritora Lídia Jorge que plasmou esses saberes e tradições na literatura, salientando O Dia dos Prodígios.
Falámos dos projectos da Gulbenkian, um dos quais coordenei na serra algarvia e de como essa experiência me permitiu conhecer ainda melhor a realidade da serra, fazendo recolha de saberes, tradições e cuidando, com gestos e palavras de apoio e conforto, dos mais isolados e desfavorecidos.
Referiu o administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian que esta foi e é uma função biunívoca em que ao ajudar se aprende e ao aprender se ajuda.
Interagir, incentivar à partilha, valorizar os saberes contribui para a melhoria da auto-estima de uma população, por vezes chamada de analfabeta, e que tem tanto para contar.
Cada vez que um destes idosos morre ficamos mais pobres, principalmente se não se fizer recolha desses saberes, usos e tradições.
Graças ao telemóvel foi possível captar som e imagens que fazem parte de um imaginário telúrico, mas que ainda é tão real. São lendas, mezinhas, orações e cantigas de uma ancestralidade que já não pensava encontrar, aliás é um património intangível em vias de extinção. Felizmente ficará em arquivo digital.
Que a Fundação Calouste Gulbenkian continue com a missão de contribuir para a preservação da memória e manutenção do Património Cultural Imaterial.
* A autora não escreve segundo o acordo ortográfico
* Investigadora na área da Sociologia;
Faculdade de Ciências Sociais
e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
luisa.algarve@gmail.com