Não faltará quem assegure que a democracia, tal como a conhecemos, se encontra em sério risco. A evidência empírica desse declínio manifesta-se na crescente polarização das sociedades, na ascensão franca dos extremismos e na banalização da violência. E nós, movidos pelo ímpeto sincero de melhorar este estado de coisas, apressamo-nos a publicar uma indignação profunda numa rede social, uma ilusão noutra e o aviltamento da identidade de alguém noutra ainda. Depois de tamanha excitação e de algum tempo gímnico de submissão à tirania da estética corporal, sentamo-nos no sofá, repousamos o espírito e os músculos zigomáticos — esses que puxam os cantos da boca — e o risório que os estica para os lados, compondo largos sorrisos diante dos vídeos do TikTok. Afinal, a vida não é só participação cívica; essa, demasiado cansativa, concede aos modernos guerreiros o direito a um pouco de prazer lúdico, já tão central na existência contemporânea. Assim vai o nosso mundo, nas metamorfoses a que o temos sujeitado.
Segue-se então a vida aprazível que habita entre posts, ou aquela outra, bem mais rugosa e cediça, que ressurge sempre que a bateria do telemóvel se esgota e somos obrigados a acordar para uma realidade adversa. Ainda assim, mesmo essa fronteira se dilui, pois também a vida virtual caminha, a passos largos, para o mesmo destino. Aí, reencontramo-nos com a vida chata, monótona, baça — onde os clientes exigem simpatia, os patrões impõem obrigações desmedidas em troca de ordenados minguados, incapazes de satisfazer rendas proibitivas e os filhos reclamam atenção.
Quiséramos nós que essa vida áspera, analógica, durasse o menos possível, para regressarmos ao fantástico mundo das redes, onde a rapariga gira faz um trocado de perna com uma viola no colo, ou exibe novos enxertos de silicone em mais uma metamorfose do efémero.
Não há dúvida: estamos a desistir do real tanto quanto podemos, para moldá-lo ao virtual — onde é permitido vociferar contra o exibicionista que não toleramos. Esse mesmo que, não raro, quando morre alguém famoso, se apressa a publicar uma fotografia tirada ao seu lado, emprestando a si próprio, sob o pretexto de pesar público, um estatuto social que não possui. É grotesco como a morte pode ser apropriada por alguns para a sua autopromoção.
Neste palco de sombras, rendemo-nos, no plano político, à monotonia das fracas escolhas que fazemos — fracas porque poucos, à exceção dos intrépidos fervorosos, quase fanáticos, lhes reconhecem mérito; valentes porque elevam à quinta potência a polarização e a radicalização dos espectros ideológicos. Nessa agitação social, sobram os lamentos dos moderados, que nos parecem ineficazes, tímidos, mornos, frouxos — incapazes de mobilizar a trama emocional da vida, agora apropriada pela política, convertida em espetáculo, como previu o visionário Guy Debord.
Admiramos, cada vez mais, cabeças inconsistentes, gelatinosas, que tratam os problemas com uma simplicidade insultuosa. Não temos mais tempo para as complexidades que empurram o amanhã com a barriga, nem paciência para os congeminadores de outrora, de semblante gasto e grotesco.
A moda e a vida pertencem agora aos insubmissos que, na vastidão da sua ignorância, ousam convencer os concidadãos de que é possível transformar a existência num salão de baile à moda de Trump. Pois, na urgência absolutista do presente, que se dane o amanhã — venha a versão mais otimista da Belle Époque.
Começamos a aceitar as autoridades impostas em nome da ordem, como contrapeso às esquerdas populistas que promovem o desprezo pornográfico por essa mesma ordem. O amor à liberdade tornou-se um caso de divórcio social; e a política, uma pálida eleição de males menores.
A História — essa de longo fôlego — verá talvez em Nietzsche o intérprete necessário do novo tsunami de violência discursiva e física que se instala no âmago da sociedade de bem-estar: justamente aquela que permitiu que nunca tantos vivessem e colhessem os frutos da abundância.
Nietzsche tinha razão, mas os séculos XIX e XX escolheram como padrinho social o velho Marx, junto de quem acorreram em massa, movidos pelo sonho de um éden secular erguido pela messiânica classe operária.
Ou o Ocidente reflete, com seriedade, sobre os obstáculos que se erguem à estabilidade do seu Índice de Desenvolvimento Humano — divulgado pela ONU, também ela mergulhada numa crise de sentido — ou o declínio continuará a aprofundar-se até se tornar irreversível.
E se, como vaticinou Fernando Pessoa:
“No comboio descendente
Mas que grande reinação!
Uns dormindo, outros com sono,
E os outros nem sim nem não —
No comboio descendente
De Palmela a Portimão…”
Então é urgente que o Ocidente desperte da letargia em que jaz, avassalado pela tecnocracia europeia, e recorde que a democracia não se institui num ato único. É um edifício frágil, dinâmico, sujeito a erosão contínua — e, por isso mesmo, deve ser reerguido todos os dias, antes que o comboio descendente chegue, enfim, ao seu destino final.
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