A Orgia do Poder, título excessivo de Pippo Russo, bem poderia ser nome de um livro inspirador do alinhavo destas letras que dão forma à costura dos meus pensamentos. Mas não! Foi apenas o meu sobrevindo e inspirado mote para, no último dia do findo março, agitar os braços com um imenso frenesim, crocitando-me com um rasgado espanto.
A comissão independente do Centro de Estudos Sociais (CES), que tinha como missão o esclarecimento de eventuais situações de assédio sexual e moral, naquele espaço de formação avançada, concluiu, após 11 meses das primeiras denúncias, que a hierarquia daquele Centro “propiciou” assédio e abuso de poder.
Desde o início deste folhetim, inaugurado sob os auspícios do criativo artigo de três investigadoras que passaram pelo CES, que a minha deslavada ironia o concebeu como uma velhaca maledicência contra tal academia e tão abrilhantados académicos. Difamador, logo pensei que tal produção, engendradora de tamanhos estragos reputacionais, só poderia emanar da fértil imaginação de gente néscia, pouco dada à queima de pestanas, como nos tempos sacrificiais em que os alunos de doutoramento estudavam à luz de velas e lamparinas. Afinal, propiciar é tão só fazer surgir algo, geralmente como um benefício e, em todo o caso, não equivalendo ao exercício efetivo de tais práticas.
Confesso que o título The walls spoke when no one else would (“As paredes falaram quando mais ninguém o fez”), um dos capítulos de Sexual Misconduct in Academia (“Má conduta sexual na Academia”), editado pela mundialmente prestigiada Routledge, tinha-me deixado siderado.
Deduzo, talvez por manifesta ignorância literária, que nem a famosa obra “O Príncipe” de Maquiavel, ousaria produzir, com tanto rigor e precisão, astúcias tão malignas do engenho humano, concebidas para torcicolar e destroçar o palco social da fina flor da Honoris Causa Coimbrã.
Reza, o referido relatório, que o CES estava ungido por relações de poder dotadas de uma “hierarquia piramidal” (termos que só académicos brilhantes saberão o seu real e efetivo significado), e uma cultura de informalidade propiciadora de “situações de conflito de interesses, de assédio e de abuso de poder”.
Depois, viria a reinante “confusão”, entre as esferas profissional e privada, configurando-se repartida entre contendores, assim os denomina a reputada independência da Comissão, uma vez que, segundo a mesma, tanto por parte das pessoas denunciantes como por parte das pessoas denunciadas, tal confusão apenas ocasionaria “situações de conflito de interesses, de assédio e de abuso de poder”, o que também parece ser bem genérico.
Apelidar de confusas, as relações entre as esferas profissional e privada dos indivíduos, é não compreender a harmonia da convivência social, que faz compartilhar espaços, no seu próprio benefício.
Não vá o leitor pensar que a referida informalidade possa ter paredes meias com qualquer transtorno obsessivo e já me apresso a explicar. Trocada por miúdos, ela apenas anota a existência de reuniões em espaços privados “entre pessoas em posições hierárquicas diferentes e dependentes, não se coadunando, estranhamente, segundo a referida comissão, “com uma boa e responsável prática académica”. Ora, francamente! Não parece aceitável que estas observações quase se revistam de um perjúrio desarmante. Já uma pessoa não pode frequentar uma pastelaria Vénus, depois da crueza de um estafante dia de labor, onde se possa comer um pão de ló de Coimbra ou um pudim das Clarissas. À falta de melhor sugestão, pensa-se num pão de massa, na Toca da Piriquita, fabricado por um processo tão demorado e artesanal, que dá tempo a que o vinho possa fazer descer os seus polifenóis relaxantes às paredes do estômago, para se harmonizar com a boa chanfana, enfim, algo que ofereça o dom de ficar um esquecido e merecido tempo, dedicado à tese e ao descanso das enfastiosas relações conjugais.
Claro está que, “assédio e abuso de poder”, são hipóteses meramente académicas. Talvez por isso, tais confusões ou “irregularidades”, não tenham passado em vão na pertinente e categórica afirmação de Boaventura Santos de que “ele é que não as cometeu”. Se de irregularidades se tratou, presume-se que tê-las-á produzido apenas na forma de piropos, e tão só sob o manto de uma complacência própria da magisterial cultura machista da época. Vivia-se um tempo aprumado pela profunda convicção de que “qualquer mulher dos anos 60 ou 70 que recebeu um piropo e nunca gostou é hipócrita”.
Que homem resistiria eximir-se da generosidade desse gosto a uma mulher, sabendo dos efeitos benéficos de um piropo? Quem ousaria dispensar-se dessa arte, inscrita na inocente gesticulação com a mão e na mais sublime exclamação, através de estereotípico italiano de um profundo “mamma mia”?
Longe das pervertidas tentativas de engate, tais piropos engraçados apenas cumpriam, com distinção e louvor, essa espinhosa missão e uma altruística responsabilidade social de fazer emergir rasgados sorrisos dos rostos femininos.
Incomodado com o meu desconforto nostálgico, confrontado com a atual inadequação e repúdio dos piropos, tenho uma infinita pena de já não poder satisfazer esse apreço e gosto das mulheres de antanho, que hoje apenas projetam neles mazelas humanas.
Sim, porque quando um homem depositava a sua virilidade num comentário ao corpo de uma mulher, dizendo que tinha “umas belas pernas”, ele apenas era percorrido pela sublime ideia que não se deveria envergonhar de tecer considerações estéticas elogiosas aos corpos das criaturas que Deus não se envergonhou de criar. Pois é! Reconheço, como Boaventura, que a masculinidade e a feminilidade já não são o que eram.
Terá sido mesmo lastimável que as referidas doutorandas, com as suas mentes ingratas e com o seu imaginário povoado de efabuladas obscenidades, tenham recusado, ao tempo, ser epígonas dessa arte secular do piropo, agora associada a uma masculinidade tóxica.
Mas, felizmente que não faltam boas e expeditas mezinhas caseiras, para se por cobro a tais sem-vergonhices. Para atenuá-las ou mesmo combatê-las, nada melhor que o antídoto de umas sanções acessórias às doutorandas, a benefício do infrator, condicionando a sua contratação nos três anos após o curso. Só pode ser uma medida catita, a bem da Nação, para por cobro a esta ousadia de as doutorandas virem a público falar de pipis ou da sua orquídea sexual. Só assim, as atuais alunas, em idêntica condição, não terão mais atrevimentos acusatórios como os que foram expostos na malograda edição da Routledge.
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