As maçãs caem das árvores desde que a macieira existe. Porém, foi preciso que um desses frutos, decerto tentadores ― segundo consta fizeram que fossemos expulsos do paraíso ― caísse, não numa cabeça qualquer, mas precisamente na de Isaac Newton (1643-1727) para que ele se perguntasse porquê. A maioria de nós talvez tivesse soltado um impropério à fastidiosa maçã por interromper uma boa sesta à sombra de tão frondosa árvore e se virasse para outro lado tentando recuperar o sono. E as frutas teriam continuado a cair das árvores, durante os séculos seguintes, sem que ninguém se preocupasse com isso.
A bem da ciência, Newton não desistiu da sua pergunta até encontrar a resposta que configura a lei da gravitação universal, publicada em 1687 nos seus Tratados de Filosofia Natural: “duas partículas quaisquer do Universo atraem-se por meio de uma força que é directamente proporcional ao produto das suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância que as separa. É devido a esta força fundamental que os planetas permanecem nas suas órbitas, que as fases da Lua provocam as marés na Terra, e todos os seres e todos os objectos são atraídos para o centro dela. O mundo funciona assim, toda a nossa experiência no-lo comprova, só um louco ousaria pensar que não”.
A voz louca surge em 1915, na pessoa de Albert Einstein (1879-1955), prémio Nobel da Física em 1921, com a publicação da sua Teoria da Relatividade Geral que descreve a gravidade como uma curvatura do espaço-tempo. Dela não nos ocuparemos neste artigo.
Regressemos a Newton. Continuando a observar cuidadosamente a natureza, o cientista inglês apercebeu-se de que o nosso contacto com os objectos no dia a dia pode ser enganador. Por exemplo, os objectos tendem a permanecer imóveis a menos que sejam empurrados. Sendo assim, por que não se imobilizam nas suas órbitas os planetas ou a lua? Nada os empurra … Newton afirma que os planetas estão num estado natural, livres de influências exteriores. Pelo contrário, os objectos na terra estão constantemente a sofrer as influências uns dos outros: se faço deslizar a caneta contra o tampo de secretária, o meu impulso é contrariado pelo atrito da caneta contra o tampo; se o atrito não existisse a caneta continuaria a mover-se indefinidamente, tal como ocorre com os planetas. Neste exemplo podemos observar as três leis fundamentais da física newtoniana:
1ª qualquer objecto permanece imóvel, ou desloca-se a uma velocidade constante, desde que nenhuma força exterior actue sobre ele.
2ª A força é igual ao produto da massa pela aceleração (F=MxA). Ou dito de outro modo: dividindo a força aplicada à caneta pela massa desta, o resultado é a aceleração.
3ª A cada acção corresponde uma reacção de intensidade igual e de sentido oposto. Vejamos: ao deixar cair a caneta na secretária, apesar da obediência à lei da gravidade, ela não fura o tampo.
Que implicações filosóficas decorrem destas três leis fundamentais da física clássica? Vimos no exemplo acima que o comportamento da caneta ― a sua posição e velocidade ― pode ser prevista se conhecermos a sua massa e as suas interacções com os outros objectos e forças que sobre ela actuam. Assim sendo, se conhecêssemos a posição e a velocidade de todas as partículas do universo seria possível prever o futuro de qualquer partícula, portanto, seria possível prever o futuro do universo. Ao conhecermos todas as causas, poderíamos prever todos os efeitos.
Na mente do físico inglês surgiram então questões éticas que, neste momento, podem assomar a qualquer de nós: será o universo uma gigantesca engrenagem? Serão os seres humanos uma espécie de fantoches, com movimento pré-determinado, e ausência de livre arbítrio?
A investigação sobre a natureza da luz remonta à Antiguidade. Newton tentou também explicar o comportamento da luz supondo que esta era composta por partículas cujo comportamento ― de acordo com as leis que enunciámos anteriormente ― poderia ser previsto conhecendo as interacções com as outras partículas e forças que nela atuam. Se a luz fosse uma onda tenderia a espalhar-se como a água do mar sobre um rochedo. Ora o comportamento observável da luz parecia sugerir tratar-se de uma sucessão de partículas que se deslocam em linha recta pois, quando a luz encontra na sua trajectória um obstáculo com um rebordo bem definido, produz-se uma sombra de contorno também nítido.
Tudo permaneceu pacífico até que em 1801 o também britânico Thomas Young (1773-1829) triunfa no meio científico com a experiência da dupla fenda que serve de base à sua teoria ondulatória da luz. Dirá que se o objecto é pequeno as ondas rodeiam-no e refazem-se atrás dele por difração, não deixando praticamente nenhuma zona de sombra. No entanto, se o obstáculo for muito maior do que o comprimento da onda atrás dele fica uma zona de ondas paradas. Clarifica que, se a luz for uma onda, é também possível ter sombras bem definidas desde que o comprimento de onda da luz seja muito inferior às dimensões do objecto que projecta a sombra.
No final do séc. XIX era preciso ser doido ou ser um génio para se atrever a contrariar a bem estabelecida teoria ondulatória da luz. De novo se ouve a voz de Einstein cuja investigação sobre o comportamento do átomo, consegue demostrar que a luz é corpuscular: trata-se de uma sucessão de quanta ou fotões. Com assombro, verificou-se que o electrão não executa a transição de um nível de energia para outro por influência de qualquer causa externa, nenhuma razão explica porque o salto quântico se dá agora e não antes ou depois. Trata-se de um acaso estatístico. A Lei da Causalidade começa a ficar abalada.
O pioneiro alemão da mecânica quântica Werner Heisenberg (1901-1976), Nobel da Física em 1932, decide retomar a experiência da dupla fenda, mas acrescentando-lhe um instrumento de medida. Uma máquina dispara electrões contra uma superfície que tem duas fendas. Se o electrão tiver um comportamento de partícula atravessa apenas um dos buracos e deixa uma marca, tipo bala do outro lado. Se o electrão for uma onda, poderá atravessar os dois buracos ao mesmo tempo e deixar um padrão de interferência do outro lado. O físico alemão viu-se a braços com o seguinte resultado: colocando um dispositivo que permite saber por qual dos orifícios passou o electrão, mas sem lhe obstruir a passagem, os electrões comportam-se como balas, ora passam por uma fenda, ora passam por outra. Nunca há passagem simultânea pelas duas fendas. Porém, sem esse dispositivo, os electrões comportam-se como ondas. Os electrões parecem não só saber se os dois orifícios estão abertos ou não, mas sabem também se estão ou não a ser observados, e comportam-se em conformidade!
O físico austríaco Schrödinger (1887-1961), Nobel da física em 1933, vai refazer os estudos matemáticos. Para espanto de todos, quer tomando o electrão como onda quer como partícula, os cálculos resultam em perfeita concordância!
A experiência das duas fendas deu origem a diferentes interpretações:
Teoria dos Fantasmas: um electrão assim que abandona a fonte, desdobra-se em fantasmas independentes uns dos outros. Estes interferem entre si e daí a interferência no alvo. Estes fantasmas só actuam quando não estamos a olhar. Se o fizermos desaparecem todos, à excepção de um que se materializa no electrão real.
Teoria dos Mundos Possíveis: existem tantos mundos paralelos quantas as possibilidades de materialização possível. A cada possibilidade pode corresponder um mundo diferente. Ao observarmos tornamos real uma possibilidade, portanto, só é real aquilo que vemos.
Teoria do Pantagruel Quântico e sua Receita Mágica: um acontecimento é igual à soma das condições iniciais com as condições finais. Desde que não se façam perguntas sobre o significado tudo funciona bem. Se se perguntar por que razão o mundo é assim, não sabemos.
E agora, caro leitor, que implicações filosóficas retirar de tudo isto? Atrevo-me a propor algumas:
Parece ser que uma dada observação é válida para a experiência em que é efectuada mas não pode ser usada para inferir acerca do que é observado. O mundo parece decidido a conservar até ao último momento todas as suas opções, ou probabilidades intactas. É o acto de observação que obriga o sistema a decidir-se por uma certa probabilidade que, então, se torna real. Como bem demonstrou Heisenberg, o observador não é neutro com respeito à experiência.
Na física clássica é possível saber a posição e a velocidade (quantidade de movimento) ao mesmo tempo. Portanto, existe a lei da causalidade.
Na física quântica a posição é conhecida à custa da perda de precisão do valor da velocidade e vice-versa. Portanto, não é possível a lei da causalidade.
Concebemos o mundo como existindo aí fora, independentemente de nós o percepcionarmos ou não. Porém, a física quântica vem dizer que de uma partícula nem sequer podemos afirmar que existe quando não a vemos. No mundo quântico só possuímos aquilo que vemos, nada é ontologicamente real. O máximo que se consegue são ilusões concordantes entre si.
A vida quotidiana parece reger-se de acordo com as leis da física clássica, newtoniana. O microcosmos parece obedecer às leis da física quântica. Dito de uma forma muito simples, o problema que se coloca é o seguinte: se o grande é constituído pelo pequeno, como podem as leis que regem um e o outro ser não apenas diferentes mas contraditórias e irreconciliáveis?
Espero por si, no próximo Café Filosófico, dia 22 de Setembro, para me ajudar a pensar em tudo isto.
* A autora não escreve segundo o acordo ortográfico
Café Filosófico: 22 de Setembro de 2022, 18:30 no AP Maria Nova Lounge Hotel
Inscrições: filosofiamjn@gmail.com
* Doutorada em Filosofia Contemporânea;
Investigadora da Universidade Nova de Lisboa