A palavra “vaidade” não figura explicitamente na lista dos sete pecados capitais listados por Evágrio Pôntico nos idos do século IV. Mas está claramente associada à “soberba”, na qual o orgulho de alguém nas suas próprias qualidades e conseguimentos se transforma facilmente em arrogância e exibicionismo. É um sinal dos tempos que correm, um há-dê-éne das redes sociais, uma conquista da publicidade que impinge modelos de beleza, distinção, comportamento e sucesso para onde quer que uma alminha se volte. Pode ser uma eterna falsa sensação de fim do mundo que se repete a cada geração, mas até parece que nunca houve tanta gente a suspirar pelo que os outros têm ou fazem (inveja), tanta violência e tanta raiva (ira), tanta vontade de trabalhar cada vez menos (preguiça), tanta ganância (avareza), tanto obeso (gula), e tanto sexo para todos os gostos e carteiras (luxúria).
Fiquemo-nos pelo capítulo primeiro. A vaidade é uma característica inerente ao ser humano que gosta de ser admirado, valorizado, reconhecido e aceite pelos outros. A autoestima é salutar, o problema surge quando a vaidade se torna excessiva ou superficial, se transforma em vício e subjuga cada qual em adorador de Narciso, rodeado de espelhos por todo o lado. A vaidade estética, a preocupação excessiva com a aparência física vem à cabeça no ranking das vaidades. Lutar contra as rugas do tempo é uma batalha com final inevitável. Faz parte das leis da vida. Mas fazer por atenuar ou retardar essa derrota, conviver com essa curva descendente não tem necessariamente de ultrapassar os limites do razoável, do ridículo até, a que os avanços da cirurgia e das ciências da estética convidam, quantas vezes com consequências doloridas.
Nem todo(a)s têm que ser lilis canecos, recordistas mundiais do retoque plástico, campeões do botox, esgares de sorriso em pele esticada. Nunca houve tantas loiras em Portugal. Voltou a haver barbearias ao estilo antigo em cada esquina. Um estudo recente da GiK em 23 países, concluiu que os portugueses estão entre os que dedicam mais horas semanais com cuidados pessoais (banho, cabelo, roupa, maquilhagem, depilação). Os italianos são os mais vaidosos e os chineses os mais desleixados, e tudo isto já sabíamos. Tudo bem, tudo bem, dentro dos limites do razoável, é o que se pede.
Uma das formas mais visuais de vaidade nos tempos que correm é de natureza corporal, a obsessão com a forma do corpo, que pode ir do emagrecimento doentio e provocado, à exibição intimidatória de músculos fabricados em ginásio. Faça chuva ou faça sol, é ver esses trabalhadores do body building em camisolas de alças ou manga curta, exposições ambulantes de arte tatoo, evidenciando proeminências do seu poder físico, em permanente estado de tensão, como que ansiosos por demonstração. Também se desenvolveu bastante a vaidade intelectual, a vontade de mostrar ao mundo a superioridade da sapiência, a largueza do currículo, longas páginas onde cabe tudo, doutoramentos, mestrados, licenciaturas, pós-graduações, formações, workshops, artigos, conferências, folhetos, livros e panfletos, uma colecção infindável de diplomas, só não cabe a paciência suficiente para tudo ler e compreender a grandeza de tais cérebros. Nunca houve tantos sábios à flor da terra, e ninguém parece capaz de colocar um fim a este tsunami de crises que se abate sobre a Humanidade. Também existem os obcecados das condecorações, os coleccionadores de medalhas, militares e civis, que ostentam orgulhosamente nos peitos em dias de comunhão solene.
A vaidade materialista existe desde que o mundo é mundo, mostrar status e posição social, exibir à saciedade bens materiais, iates, carros, roupas de marca, relógios, jóias. A facilidade como actualmente se veícula a informação torna mais evidentes e chocantes as desigualdades sociais de quem não tem nada para mostrar além de fome e miséria. A ofensa chega ao ponto de se ter tornado moda usar calças esfarrapadas. A vaidade na política também se manifesta de formas variadas. A busca constante por elogios e aplausos, estar no centro das atenções, nunca admitir erros, falhas ou contradições, mostrar imagem de competência, confiança e capacidade de acção, criar um círculo exclusivo de causas.
Campanhas eleitorais como a que está aí à porta, multiplicaram os políticos tik-tok, a divulgação de vídeos hora a hora invadem os telemóveis dos eleitores, para lá dos limites do suportável. Haja temperança! O exagero mata. Diziam os latinos que vanitas significa o que é vão, fútil e ilusório. Tinham razão. Terminada esta vida, fica cá tudo, é a desmaterialização da insignificância.
O excesso de humildade também pode esconder uma vaidade disfarçada, buscando uma validação indirecta. O que conta é a intenção e a motivação por detrás da atitude humilde. Vaidade em demasia, é de facto pecado. Vaidade quanto baste, é virtude, se estiver temperada pelo equilíbrio e pela moderação, numa busca saudável por autoafirmação que não se transforme numa busca vazia por aprovação e likes, mas sim numa maneira de se sentir bem consigo mesmo e com a sua imagem perante o mundo.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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