Simón, de Miqui Otero, com tradução de J. Teixeira de Aguilar, foi agora publicado pela Dom Quixote.
Vencedor do prémio OJO Crítico 2020, apareceu em todas as listas de melhores livros do ano das principais publicações da imprensa espanhola. Muito bem recebido pelos leitores e pela crítica, tem já um projeto de adaptação audiovisual.
Este livro com mais de 400 páginas é afinal a história de uma vida inteira. A vida de Simón – pelo menos até aos seus trintas.
Simón tem 8 anos, em 1992, passa os dias no bar da família, e nutre uma adoração pelo seu “primoirmão” Ricardo Rico, dez anos mais velho, que lhe apresenta o mundo como uma aventura, mostra-lhe truques de magia, o introduz nos romances de capa e espada e lhe sublinha os livros que recomenda. Rico vive ele próprio uma estranha história de mistério, propenso a desaparecer na noite e a aparecer no dia seguinte com uma Vespa.
Páginas depois, o primo desapareceu subitamente na noite, sem ninguém saber dele ou o que aconteceu a um suposto “tesouro” de que todos falam, mas ninguém sabe de que se trata. Contudo, a sua influência perdura, nomeadamente a forma (nefasta?) como levou Simón a confiar que a ficção explica a vida e a imaginar-se como um “espadachim de fim de século” (p. 121). É emblemático o episódio em que Simón tenta calçar os “ténis gigantes Converse All Star pretos” que o primo Rico lhe deixou aos pés da cama, anos antes (p. 73).
Dois anos depois, Simón trava amizade com uma jovem da sua idade, a fascinante Estela, de cabelo verde (que evoca Rosa, de A Casa dos Espíritos, de Isabel Allende), a quem passa a ajudar a vender livros na feira da ladra de domingo. Entretanto, continua a procurar pistas que expliquem o que aconteceu ao primo, ao mesmo tempo que começa a “inventar-se” como uma personagem de livro, a construir-se, a “acreditar nela”, a “agir como tal” (p. 172); inclusivamente Simón pensa no discurso rebuscado e floreado dos romances que lê.
Com saltos temporais a cada 2 anos, aproximadamente, entre 1992 e 2018, acompanhamos o percurso de Simón.
“O nosso herói não sabia uma coisa que talvez o tivesse consolado e é uma pena que ninguém lho dissesse: Simón, vais ver, crescerás, às vezes mesmo que não queiras e às vezes depressa de mais. Olha: daqui a duas páginas apenas terás mais dois anos. Sim, prometo-to. Não, não te posso prometer mais nada. Para já.” (p. 74)
Um romance de formação atual, pleno de aventuras pícaras, com desfecho cómico; peripécias que ilustram uma frase que ressoa ao longo da narrativa: “o acaso pode desordenar a vida mas ordena a ficção” (p. 70). É também nesses momentos determinantes em que a vida se desordena para Simón que o narrador se imiscui, como uma voz off que fala com o leitor, num jeito cúmplice, sabendo que a personagem não nos ouve: “Não abras os olhos. Enquanto não o fizeres tudo é possível.” (p. 282)
Um romance original e encantatório que é também uma elegia ao poder da literatura de transfigurar ou, pelo menos, servir como um escape de consolação às nossas vidas. A certa altura, podemos ler como afinal os romances são “para se lerem enquanto se tenta procurar uma vida e não para os viver por dentro nem para os protagonizar” (p. 286). Resta saber se nessa épica bebida nos livros, com que por vezes imaginamos a nossa existência, o tempo, que age como o verdadeiro critico literário, tem o condão de nos acordar da desfaçatez de nos sonharmos como personagens.
Miqui Otero tem dois romances anteriores ao sucesso de Símon, que esperamos virem a ser publicados por cá. Este é considerado o seu melhor livro, um dos grandes romances do ano, numa voz muito própria em que ressoam ecos de Marsé ou Mendoza.