Desta feita vamos seguir duas viagens, em boa verdade, duas peregrinações, na margem direita do Tejo, sem nos afastarmos muito de Lisboa. Mas o suficiente para apagar a charivari dos turistas e a cacofonia dos tuque-tuque. Vamos seguir os motes que nos propôs Saramago ao longo da narrativa, ainda mágica, mais de quarenta anos depois, do Memorial do Convento.
Diria que no Memorial há dois grupos de três grandes viagens.
As viagens das coisas, representadas pelo percurso da pedra benedictione ao longo de “oito dias completos”, desde a pedreira de onde foi arrancada às entranhas de Pêro Pinheiro, até Mafra. Outra será o percurso dos santos e dos sinos, a desembarcar no cais de Santo António do Tojal, no final de um canal aberto a braço, Tejo adentro, num desfecho digno de Conrad, para périplos caprichosos que se estenderam desde territórios distantes. E a mais emblemática, até por ficcional, a viagem do veículo imaginado pelo padre Bartolomeu de Gusmão, a Passarola, sobrevoando com os nossos heróis, a obra do convento em Mafra e aterrando desajeitadamente, dizemos nós, a quem nunca foi dado dirigir tal equipamento, para os lados de Montejunto, onde ficou até à sua desaparição de cena, nunca a expressão deus ex machina foi tão apropriada, transportando um único passageiro – respeite-se aqui a privacidade do leitor, esquecido ou demoroso, não introduzindo spoilers mesmo numa obra tão conhecida, tão universal.

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Mas que lugar era este, perguntará o leitor crendo que tinha sido uma criação da capacidade ficcional, imensa, de Saramago?
Mas há também as viagens das pessoas, de cada um dos personagens. Viagens com um percurso interior, autênticas peregrinações, quase iniciáticas, de Blimunda, a das Sete-Luas, de Baltasar, o dos Sete-Sóis e do próprio padre Gusmão, numa demanda pelo conhecimento, que na época era naturalmente rumo aos Países Baixos.

Há alguns anos já, que em boa hora foi criada e devidamente sinalizada, a rota literária do Memorial do Convento, que antes mesmo de desembocar no auge de Mafra, percorre a área menos conhecida de Santo Antão do Tojal com a sua discreta e quase ignorada pelo turismo, praça monumental, com o palácio da Mitra, a igreja anexa, o cruzeiro e o impressionante palácio-fonte. Mas que lugar era este, perguntará o leitor crendo que tinha sido uma criação da capacidade ficcional, imensa, de Saramago? Por aqui terminava o curso navegável do rio de Sacavém. O afluente do Tejo que junto à foz, na extrema do Parque das Nações, dá também pelo nome de rio Trancão.

As barcaças carregadas subiam o rio até este lugar – aliás, aqui ao lado, no muito abandonado Paul das Caniceiras, ainda é possível imaginar a braveza original, observando os esteios que vêm morrer nos caniçais, povoados de patos-colhereiros, galeirões, corvos-marinhos e gansos do Egipto. E daqui para a frente seguiam por estrada, pelo caminho que D. João V mandou alargar, para dar passo a, até três carruagens emparelhadas, puxadas por juntas de bois, pelas léguas restantes, até ao lugar do Alto da Vela, junto a Mafra, onde lentamente, pelo menos para a impaciência de um rei constantemente recordado da efemeridade da vida, se erguiam as paredes do convento prometido.

O outro lugar emblemático desta viagem das coisas, desta peregrinação, é Cheleiros. Aqui, anunciando com aparato o lugar, a antiga estrada real desce em curvas, sinuosas, até ao vale. Ainda hoje é fácil reconhecer as descrições do autor, sem grandes esforços de imaginação. Cingindo as margens do rio Lizandro, espera-nos a ponte medieval e um pouco acima, já na margem norte, a matriz precedida pelo seu cruzeiro de fuste salomónico. Por aqui passou o tal carro, “espécie de nau da Índia com rodas” construído para transportar a benedictione para a tracção do qual se calcularam duzentas juntas de bois, e com igual engenho e mais criatividade, logrará reconhecer algures, a casa onde moraria o tal Francisco, o da perna inquieta, mas para isso terá o leitor de voltar a pegar no livro.
Pois boa sorte. Ele há lá prazer maior para uma tarde de inverno…
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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