O OUTRO LADO DA BOLA
Quando esta crónica sair a público (16 de Dezembro), estaremos a dois dias de conhecer o novo campeão do mundo de futebol de selecções. À distância em que estas palavras são alinhavadas, não é sabido se Portugal estará lá, ou se escorregou numa das escadas sinuosas do caminho. É imprevisível saber se o capitão da “equipa das quinas” se redimiu de uma fase de grupos abaixo de medíocre, se bateu mais algum recorde, se reencontrou o caminho dos golos, ou se fez a vontade de meio mundo, incluindo um número impensável de compatriotas, que decretaram a sua senilidade futebolística. É possível, mas improvável, que saia de Doha como herói universal, regional ou nacional. Nada tem ajudado, desde a falta de sorte pura, ao súbito desaparecimento das capacidades que fizeram dele “o melhor do mundo”, e sem esquecer a matreirice de muitos colegas que deixaram de municiar o artilheiro como em épocas não muito distantes. O mundo, a sociedade, são assim. Deliram para levar os astros ao pedestal, e comprazem-se em fazê-los tombar sem piedade, nem remorso, nem memória. Tudo isto é interessante, mas não é o mais importante.
“O futebol, esse jogo maravilhoso, tal como o conhecemos, acabou”
Este Mundial do Qatar ficará na História por muitas coisas, mas sobretudo porque institucionalizou definitivamente o início de uma nova era: a industrialização do futebol. Quando Cristiano Ronaldo, expoente máximo mundial da comercialização da bola, afirmou na histórica entrevista televisiva do adeus a Manchester, em tom semi-crítico, que aquilo já passou de desporto de massas a negócio de “massa”, está tudo dito. É o Papa a assumir a transformação da sua própria igreja. Maurizio Sarri, um dos muitos treinadores que passaram pela sua brilhante e fulgurante carreira confessou aqui há anos a dificuldade: com Ronaldo, não se gere apenas um jogador e o seu papel na equipa. Tem que se gerir uma multinacional, tantos são os interesses cruzados (comerciais e emocionais) em jogo.
A apropriação do sentimento patriótico (ou patrioteiro, para ser mais directo) é outro aspecto relevante de um negócio que capturou os símbolos nacionais do hino e da bandeira, e factura biliões com eles, como se a unidade nacional de um povo se fizesse subordinada a um sentimento de claque, emocionalmente indiferente aos podres do lado escuro da bola. Sob os efeitos da dose cavalar de futebolite aguda servida à mesa da população mundial a uma escala jamais vista, a corrupção que grassa pela FIFA no topo da pirâmide segue incólume, escorrendo pelas confederações, federações, agentes e dirigentes gananciosos, pelas SAD’s, e sem esquecer aqueles artistas que, ganhando fortunas pornográficas ao minuto, tudo fazem para fugir aos impostos (como todos os milionários, de resto). Não, não foi agora que a política se apropriou do futebol. Está lá desde que o futebol nasceu, com toda a hipocrisia da real politik, porque os políticos querem estar ao pé das multidões que lhes sustentam o poder. Hitler e Mussolini fizeram-no. Putin e Xi Jinping fazem-no. Políticos maiores e menores que todos conhecemos, juntam-se aos excursionistas. Por fim, o activismo ideológico de todas as causas passou para dentro dos relvados, do racismo, à xenofobia, aos interesses de quem governa para a guerra e para a paz, às questões LGBT-Sei-Lá-Mais-o-Quê. O futebol, esse jogo maravilhoso, tal como o conhecemos, acabou.
POESIA ESCONDIDA
Muita gente escreve hoje por tudo quanto é sítio, em jornais, livros, blogues, teses académicas, postagens “facebookianas”. A par e passo de um analfabetismo provocatório do linguarejar da moda, existem cada vez mais escribas com o domínio da técnica de bem escrever. Mas o excesso de oferta acaba por gerar tédio pela fartura. Empolgar o leitor do princípio até ao fim de um texto, de uma obra, não é para qualquer um. É um talento raro só ao alcance dos eleitos para a arte de ir ao fundo dos sentimentos, como um alcatruz a puxar pela lágrima e pela raiva, pelo amor, ódio e piedade que dizem habitar dentro do coração.
A poesia é um estado superior de passar pelas coisas e pelas pessoas, e declinar com paixão o que sobra delas, do melhor ao pior. Pode ser revolta ou prostração. Rimada ou talvez não. António Aleixo, doutorado na escola da vida, conseguia dizer mais numa simples quadra, que muitos doutores em despachos com cem páginas. É, por isso, um acontecimento notável quando se descobre um poeta, neste caso uma poetisa, com uma qualidade que trespassa, com a intensidade de um tsunami, escondida ali para os lados de Olhão, Cláudia Sofia Sousa de seu nome. Assomou-se em 2016 com o livro “SobreViver”, publicado pela Andorinha Editorial, e incompreensivelmente recolheu-se ao ninho até à data de hoje. É poesia pura, prosa poética, intimidade despida, farripas de romance onde se fala de amor, o “amor materno, o amor fraterno, o amor eterno”. Mesmo com seis anos de atraso, vale a pena. Lê-se de um trago, com vontade de repetir.
* O autor não escreve segundo o acordo ortográfico