Neste tempo em que o passado ensombra o presente, em que o presente nos faz temer o futuro, em que a agressão compensa, em que a diplomacia é exceção, em que a democracia vacila, em que a política é campo de batalha e de joguetes, em que a decência já conta pouco, em que a palavra perde significado, é a força do exemplo que ainda nos faz acreditar.
Acabei de ler a autobiografia de “Francisco”. Confesso, nunca pensei ler a biografia de um Papa. Só o tempo em que vivemos me impeliu para essa leitura. E a ideia de que estamos perante um homem bom. Um homem transformador e mobilizador. Alguém que carrega uma mensagem de esperança e professa a “cultura do encontro”. E, creiam, vale a pena.
Francisco fala-nos de dignidade, quando a dignidade se desvanece. Fala-nos de humildade, quando o culto do ego prevalece. Fala-nos de bondade, convivialidade, comunidade, humanidade. Fala-nos de horizonte, não como limite, mas como abertura. Há sempre um “adjacente possível”. Quando uma porta se fecha, outras portas de abrem.
Fazemos um percurso ao longo de uma vida, apesar de tudo comum, entre as atribulações da família migrante e as diatribes de infância, a curiosidade e as convicções da juventude, as aprendizagens e as amizades determinantes, as experiências das viagens e as memórias do caminho escolhido. Mostra-se culto, melómano e inveterado leitor de todas as culturas.
Transporta-nos aos tempos de ditadura, a guerra suja de massacres, de sequestros, de delação, um beijo na face para marcar as vítimas, a detenção, a tortura, o desaparecimento, os corpos atirados vivos ao oceano de avião, os testemunhos, os julgamentos dos energúmenos e deixa a citação de um texto poético: “As mães da praça de Mayo, mulheres paridas pelos seus filhos, são o coro grego desta tragédia…”. Era, assim, na Argentina, na América Latina das ditaduras militares, na Europa fascista. Um passado bem presente.
Fala-nos de outros mares nossos, de corredores de tráfego, de gente aflita em barcaças frágeis à procura de horizontes seguros, de frios cemitérios sem lápides, de sofrimento, de fechamento, da ausência de misericórdia, mas, acima de tudo, da falta de visão política, da incapacidade de antecipação, da dificuldade de cooperação. Fala do crescimento dos populismos, da adesão ao discurso fácil da rejeição, da desconfiança, da vitimização e da culpabilização dos outros.
Enfrenta com palavras corajosas, registadas para sempre neste testemunho, as guerras atuais, as barbáries cometidas contra civis, as tentativas de genocídio, referindo que o caminho da paz tem riscos, é certo, mas comporta riscos infinitamente maiores o caminho das armas. Refere que não é possível obter resultados a qualquer custo. Fala-nos de paz, mas de paz com justiça.
Depois de tudo isto, continua a acreditar, a acreditar que é possível um futuro diferente. Incita os jovens para não se acomodarem. Fala da emergência climática e dos milhões de despojados. Fala da educação como a prova mais apaixonante da existência. Fala da rede e faz uma incursão pelas novas tecnologias e a inteligência artificial, das virtualidades e dos riscos, assumindo que, também aqui, o tema central é o da responsabilidade e da educação.
Francisco, o Papa do povo, relembra-nos: “A memória não é apenas o que recordamos, mas o que nos circunda. Não fala apenas do que foi, mas do que será”.
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