De Bestas e Aves, da escritora espanhola Pilar Adón, foi publicado pela Dom Quixote, com tradução de Rui Elias. Este romance foi galardoado em Espanha com o Prémio Nacional de Ficção Narrativa 2023, o Prémio Nacional da Crítica 2023, o Prémio Francisco Umbral de Melhor Livro do Ano 2022, o Prémio Cálamo na categoria «La Otra Mirada», e foi nomeado para o Prémio Bienal de Romance Mario Vargas Llosa.
Uma pintora de quadros-miniatura de meninas afogadas, famosa no seu pequeno círculo de celebridades, sai de casa sem telemóvel, movida por um estranho impulso, e conduz em plena noite até se aperceber que está quase sem combustível. Na bagageira leva nove quadros, todos da sua irmã afogada num desastre de automóvel, como símbolo da culpa que ela, Coro, carrega, por ser aquela que sobreviveu. Cada vez mais preocupada com o ponteiro do combustível na reserva, e perdida, faz inversão de marcha, a olhar para um lado e para o outro, até que chega a um beco sem saída.
“O caminho terminava ali. Frente a um portão preto, fechado. Não havia forma de continuar. Chegara ao fim da estrada. Era o fim de tudo, independentemente do que ela quisesse fazer.” (p. 31)
Uma mulher acaba por surgir junto ao portão e convida-a a entrar. Coro repete incessantemente que apenas precisa de um pouco de gasolina para poder seguir caminho. Mas os dias passam e ela acaba por ficar ali retida. Aquele estranho local, chamado Betânia, parece um território fora do mundo e do tempo (mais um estado mental do que um lugar), habitado por cabras, formigas, cães e uma estranha comunidade de mulheres, em que todas se vestem de igual, falam de forma enigmática, e tratam-na por a “nova”.
Na casa vive também uma menina sem pais que não vai à escola, mas tem aulas em privado, e um homem que subitamente aparece a reclamar aquela casa como sua.
Embora Coro se sinta prisioneira, a verdade é que nunca toma verdadeiramente a iniciativa de simplesmente sair da casa e voltar ao portão. O carro continua no terreno. E no terreno há um lago, de água barrenta, sobrevoado por aves de rapina.
“A ordem vivia em mentes estáveis, firmes, lógicas. E a sua instalara-se nessa espécie de estado intermédio entre o conhecimento e a irrealidade.” (p. 24)
Uma prosa enfeitiçante de uma narrativa que lança uma teia inquietante que cabe ao leitor destecer. Uma autora que criou um universo literário potente e muito singular, que nos remete para a ideia de um estado de ser primitivo, atávico, mineral, vegetal, subaquático.
“Poderia descansar. Entrar no modo branco da realidade e compreender que o seu nome não existia (isso fê-la sorrir), tal como tão-pouco existia aquela casa ou aquelas mulheres. Nada existia.” (p. 170)
Pilar Adón (que participou este ano nas Correntes d’Escritas) nasceu em Madrid em 1971. Em 2005 recebeu o prestigiado Prémio Ojo Crítico, da Radio Nacional de Espanha (RNE), pelo seu livro de contos Viajes inocentes. Em 2010 publicou a coletânea de contos El mes más cruel, pela qual foi nomeada Talento FNAC e que foi finalista dos prémios Setenil e Tigre Juan. Em 2015 o seu romance Las efémeras foi aclamado pela crítica como um dos melhores livros do ano. É ainda autora de Eterno amor, um romance gráfico, e dos livros de poesia Da dolor, Las órdenes (Prémio Livro do Ano da Associação de Livreiros de Madrid), Mente animal e La hija del cazador.
Traduziu obras de ficção e ensaio (John Fowles, Henry James, Edith Wharton) e foi uma das tradutoras de A Bookshop, de Penelope Fitzgerald, adaptado ao cinema pela realizadora catalã Isabel Coixet.
Os contos e poemas de Pilar Adón estão traduzidos em várias línguas, incluindo português.
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