Por vontade própria, Agripina Marques da Costa, hoje recolhida na residência Faria Mantero, em Belém, foi uma estrela que se ofuscou durante uma vida, para que uma outra maior se agigantasse ainda mais.
Mulher do poeta António Ramos Rosa, também escreveu poesia e tem obra publicada. Nasceu em Lisboa, trabalhou como tradutora e fala como conheceu o seu companheiro de jornada. Não esconde uma vida de dificuldades e perdoa os ‘pecadilhos’ de António, em nome do amor e da estabilidade na relação entre ambos.
O poeta farense, que morreu a 23 de setembro de 2013, partilhou com Agripina uma longa vida a dois. Ela lembra-se bem como tudo começou porque, afinal, o primeiro amor nunca se esquece. Sobretudo quando vem perfumado com pétalas de poesia.
Amanheceu a minha vida no teu rosto
De uma doçura intensa e tão suave
Como se um divino fundo nele brilhasse
Eu era o que nascia soberanamente leve
E encontrava na limpideza centro do equilíbrio
Só em ti cheguei amanhecendo na minha madurez
Entrei no templo em que a luz latente era a secreta sombra
Foste sonhada por meus olhos e minha mãos
Por minha pele e por meu sangue
Se o dia tem este fulgor inteiro é porque existes
E é porque existes que se levanta o mundo
Em quotidianos prodígios
Em que ao fundo brilha o horizonte certo.
António Ramos Rosa, in O teu rosto
P – Conhece este poema?
R – Oh!… claro, conheço, evidentemente!
P – Que lindo ramo de flores, este…
R – É bonito, sim, muito bonito!
P – Lindo e sensual. Ele era assim tão declaradamente sedutor?
R – Era um poeta e um poeta com a sua genialidade já evidente nessa altura, era um sedutor de palavras bonitas!
P – Em que ano aconteceu este momento?
R – Foi logo no princípio de nos conhecermos… Deixe-me cá ver que eu já estou um bocado desmemoriada e não sei precisar ao certo sem o risco de me enganar. Não me recordo exatamente, mas o poema original está assinado e publicado e não o tenho aqui à mão…
P – Dou-lhe tempo para se recordar até ao fim da nossa conversa… mas diga-me, onde é que se conheceram e em que circunstâncias?
R – Foi precisamente em Faro. Fui lá passar umas férias, ouvi-o numa sessão de poesia, e o poema foi escrito ainda em Faro.
P – Não se conheciam antes da sua vinda a Faro?
R – Não, não nos conhecíamos.
P – E a Agripina veio de Lisboa a Faro por causa do poeta ou por causa do António?
R – [risos…] engraçado… rs… foi por ele, obviamente, mas foi também pelo poeta. Ele já tinha bastante prestígio e eu tinha todo o interesse em conhecer as grandes figuras da literatura como ele já era então!
P – E casaram pouco tempo depois, não foi assim?
R – Não me fale em datas que eu não me recordo, mas sim… casámos uns meses depois. Conhecemo-nos e casámos em 1962, e dois anos mais tarde nasceu a nossa filha Maria Filipe.
P – Este poema… que ele lhe ofereceu mal se haviam encontrado, sendo uma bouquet de flores, demonstrava a pessoa sensível como um poeta não podia deixar de ser. E romântico… também tinha esse lado romântico?
R – Não esqueça que os poetas são pessoas especiais. Não posso dizer exatamente que o António era um romântico. O que sabia é que a poesia estava dentro dele. Posso até dizer que deve o seu percurso de escritor e poeta à sua mãe. A mãe sempre apostou nele. Repare que ele era de uma família pobre, mas a mãe soube identificar nele a sensibilidade poética que ele transportava, e que a dada altura já tinha dado mostras no que, entretanto, havia escrito.
Essencialmente, acima de todos os rótulos que lhe queiram colar, António Ramos Rosa era um poeta. Não podia ser outra coisa, graças à mãe que soube ler o desígnio para que o filho estava destinado.
P – Ele no princípio dos tempos dava explicações em Faro, não é?
R – Sim, dava explicações e fazia traduções.
P – Ele parecia uma pessoa tímida e reservada, foi a impressão com que fiquei nos encontros que tive com ele…
R – Era, sim senhor, de poucas falas, tímido. Repare também que Faro já era uma cidade grande e Lisboa ainda maior e ele não era uma pessoa extrovertida. Eu tenho que frisar isto mais uma vez: ele era essencialmente um poeta e os poetas são pessoas um bocado metidas consigo próprias e vivia muito no seu mundo interior. Mas sobretudo ele era uma pessoa muito recolhida, muito atenta e concentrada na escrita e na poesia. A poesia existia dentro dele e era o seu pensamento!
P – Parecia que estava sempre dialogando consigo mesmo, fechado no seu quarto interior de conversa…!
R – Absolutamente. Posso dizer-lhe que António Ramos Rosa não podia ter sido outra coisa senão poeta. Felizmente a mãe deu-lhe as condições para ele ser o que quis ser e foi.
P – A obra de António Ramos Rosa, como qualquer poeta ou artista, apresenta diversas fases de evolução. A fase inicial dele surgiu ainda em Faro com a publicação de o Grito Claro, foi o período da poesia política, o grito pela liberdade, não foi?
R – Também havia essa componente porque ele pertenceu ao MUD Juvenil e a sua poesia só podia estar alinhada com as suas ideias políticas de combatente pelos direitos cívicos e pela liberdade…
P – É nesse tempo que escreve Não Posso Adiar o Amor…
R – Exatamente, exatamente…
P – Ou então: Estamos nus e gramamos…! rsrsrs…
R – [risos]… isso é muito significativo para a época e um outro com o título Telegramas com Classificação Especial. Faro era no princípio da década de sessenta um centro de grande atividade literária que juntava os mais notáveis poetas portugueses como Casimiro de Brito, Gastão Cruz, Fiama Pais Brandão, Luiza Neto Jorge e tantos outros…
P – Foi o tempo dos Cadernos do Meio Dia..!?
R – Exactamente. Não foi apenas o António, foi um grupo que deu um impulso à poesia, fez uma rutura com o passado, deixando para trás a ‘escola velha’ e criaram uma nova forma de expressão poética de denúncia e intervenção política e social onde se incluía a poesia de António Ramos Rosa.
P – Foi um ponto de viragem na nossa poesia contemporânea?
R – Foi sim, mais tarde a poesia de António Ramos Rosa tomou outro rumo. Da experiência política passou para a consciência da própria realidade poética.
P – Passou para o incêndio da palavra ou o rosto da palavra, será assim?
R – Sim, não se pode levar tudo à letra e essa viragem tinha que se dar e evoluiu com acerto para esse patamar, positivamente.
P – Mas há autores que consideram que a obra de Ramos Rosa evoluiu dessa primeira fase de intervenção política, para uma densidade hermética em que prevalece mais a estética da palavra…
R – Absolutamente. A fase inicial chamada de poesia de intervenção, e eu não gosto da palavra, mas a viragem é onde ele se encontra realmente com a poesia e onde se assumiu gradualmente e solidamente como poeta e um poeta muito profundo.
P – Era a liberdade da palavra!
R – Sim, mas nessa altura a palavra já estava solta. Felizmente as condições políticas e sociais já tinham mudado e não podemos dissociar uma coisa da outra.
P – Voltemos à sua relação com António Ramos Rosa. Como era viver com um homem que vivia, consumia, que respirava poesia, sem grandes preocupações materiais e muitas vezes sem pensar na sobrevivência dele e da família?
R – É uma questão difícil de lhe responder e não vou dizer que as coisas foram fáceis. É verdade que uma pessoa aceita porque parte sempre da ideia que o conhecendo muito bem, muito centrado nele, sabia que essas dificuldades surgiriam e como vieram a acontecer inevitavelmente. A prioridade nele era a poesia!
P – E isso refletia-se na sua relação com ele ou não?
R – As suas perguntas são um bocado difíceis de responder, mas… quer dizer, numa ligação entre duas pessoas tem de haver cedências para ela sobreviver. E dos dois, eu era quem estava na posição de as fazer. Ele estava muito dirigido e focado para a sua obra e se alguém podia fazer cedências era eu, em nome da salvaguarda da nossa relação.
P – Portanto, a Agripina apagou-se para ele poder brilhar?!
R – … há outra coisa que temos de ter em conta. Havia assuntos de ordem prática na vida a dois e alguém tinha de os realizar. E pronto, a vida era assim, cada um no seu papel.
P – Ou seja, ele tinha o seu mundo e tarefas interiores e a Agripina tratava do lado prático da vida, sendo essa repartição de papéis que manteve o equilíbrio da relação a dois, não é?
R – Absolutamente, absolutamente.
P – Não há perguntas indiscretas, mas há umas mais pessoais e intimistas do que outras, e eu peço desculpa se o que pretendo saber de si é demasiado pessoal. Responderá se entender ou não. Dizia-se, permita-me o termo, que ele não resistia a um rabo de saias. É verdade?
R – Eu comecei por lhe dizer que o poeta é isso. E essas coisas que refere são efémeras, mas também não exageremos nessa ideia de um António Ramos Rosa mulherengo, valha-nos Deus! Não era assim tanto!
Mas não há dúvidas que na realidade ele deixava-se encantar com facilidade. Eu entendia isso como natural num poeta como ele, aberto ao seu encantamento pela beleza. E ele costumava deixar-se encantar com o belo…
P – E como é que a Agripina aceitava isso?
R – … não sei… não sei…
P – Tinha ciúmes?
R – Não, não. Como eu o conhecia bem, nas situações mais evidentes, era natural que eu não gostasse, mas isto não é questão para se colocar agora, honestamente… O importante é saber que essas situações de encantamento são situações normais com os poetas. Encantam-se com a beleza e a beleza em todos os sentidos e dimensões, e nesse caso também.
P – A Agripina também escreve, tem até obras publicadas, mas é pouco conhecida essa sua faceta!
R – Restava-me muito pouco tempo das ocupações práticas da vida que lhe falei, pelo que não dispunha de grandes oportunidades para outros sonhos. E só quando me reformei e me vi mais livre é que comecei a produzir mais poesia, até lá não havia tempo para outras tarefas nem muita disponibilidade para escrever o que gostaria.
P – E o que é que ele achava da sua poesia, do que escrevia?
R – Ao princípio não dava opinião, mas a partir de certa altura ganhou consciência da qualidade do que ia fazendo. Sobretudo, a partir do momento em que conhecemos e travámos contacto com o poeta Carlos Poças Falcão, que não sendo da cidade vinha a Lisboa com alguma frequência. Depois de muita conversa, ele escreveu-me um poema que me dedicou e ao qual eu respondi. Mostrei-os ao António e ele então sugeriu que fizéssemos um livro de três vozes. Ele não achava nada de anormal nem coisa do outro mundo que eu escrevesse poesia. Isso para lhe dizer que o António era um homem aberto e manifestou logo a vontade e o entusiasmo de escrevermos um livro a três…
P – E foi publicado esse livro?
R – Sim, sim…
P – Como se chama o livro, pode-se saber?
R – Ai meu Deus…a minha idade rouba-me a memória, mas espere um pouco (pausa). O livro intitula-se Rotações e foi escrito pelo António, por mim e pelo nosso amigo Carlos Poças Falcão. Foi uma experiência interessante.
P – É costume dizer-se que por detrás de um grande homem está sempre uma grande mulher. Sente-se assim, ou não passa de uma frase feita?
R – É verdade, é verdade! E peço desculpa, mas devo dizer que os homens são mais frágeis do que as mulheres, e elas vivendo numa sociedade que não as reconhecia, obrigava-as a serem fortes e a superarem-se muitas vezes ainda mais. Mas é um problema essencialmente estrutural!
P – Sente que foi a sua musa, o seu ombro, a sua casa, o seu refúgio, a sua inspiração?
R – Não sei bem qual o meu papel além de companheira ocupada com tarefas essenciais à organização da casa e da vida a dois. O António era um poeta especial e ele estava para além disso. Ele era a sua própria inspiração! Eu se algum mérito tive era não constituir um obstáculo!
Dados Biográficos e Literários
Agripina Jacinta Costa Marques Ramos Rosa usa no nome literário os apelidos de batismo. Nasceu em Lisboa, em 1929, trabalhou como tradutora e numa empresa do ramo comercial. Revela-se nos anos noventa do século passado como poeta.
A sua primeira obra Rotações (1991), tem como coautores Carlos Poças Falcão e António Ramos Rosa, seu companheiro de vida desde 1963. Seguem-se O Centro Inteiro (1993), em colaboração com António Magalhães e Ramos Rosa.
No mesmo ano a escritora publicou ainda Instantes. Permanência (1993; com 2ª ed. em 2004) dando corpo a uma obra literária que passa por Diário Intermitente (1996), Ciclos, Fragmentos, Idades (1998), Sonhos (2000) e Morada Recôndita (2012).
Biblioteca sem condições para acolher o espólio do poeta
O alargamento da Biblioteca Municipal António Ramos Rosa é um dos anseios que Agripina Marques da Costa gostaria de ver concretizado ainda em vida. Recorda que a família doou a obra do poeta à Câmara Municipal de Faro, na condição de serem realizadas as obras necessárias para acolher todo o espólio. Para tanto exigia-se a construção de um anexo à própria biblioteca, mas após tantos anos, lamenta que nada tenha ainda avançado.»
Faz-me a maior impressão que estando feita a maior obra que era a Biblioteca, o anexo ainda seja um projeto adiado. Tenho imensa pena que a obra não seja construída enquanto ainda cá estou«, disse