A Maravilhosa Viagem de Nils Holgersson através da Suécia, de Selma Lagerlöf (a primeira mulher a ser distinguida com o Prémio Nobel de Literatura, em 1909) tem sido daquelas leituras adiadas durante anos. No espaço de um ano sucederam-se duas edições diferentes.
Agora que nos chega, publicada na coleção Dois Mundos da editora Livros do Brasil, em versão integral, era finalmente altura de começar esta obra. A presente edição junta os dois volumes originalmente lançados em 1906 e 1907, traduzidos do sueco por João Reis e reproduzindo as famosas ilustrações de Bertil Lybeck. Trata-se de um livro com mais de 650 páginas – de letra pequena.
Este romance cruza história, fantasia, contos de fadas, lenda e geografia. Obra que resulta de uma encomenda feita a Selma Lagerlöf com o objetivo de ensinar às crianças suecas a geografia do seu país, este livro é muito mais do que isso e tornou-se um clássico. Esta história foi adotada em todas as escolas suecas e traduzida para mais de cinquenta línguas.

Doutorado em Literatura na UAlg
e Investigador do Centro de Investigação em Artes e Comunicação (CIAC)
Uma viagem de autodescoberta e de transformação interior, pois no final desta fábula o jovem Nils não será já o mesmo que partiu em viagem
Nils é um rapaz arisco de catorze anos, «alto, magricela e loiro», indolente e preguiçoso, segundo o pai, e que tira imenso prazer das suas tropelias, sobretudo se forem à custa de outros, animais ou pessoas…
Num domingo de manhã, enquanto os pais vão à missa, Nils pensa que finalmente terá horas por sua conta para se dedicar às suas imensas traquinices. Mas quando o pai ordena que ele estude a homilia, o rapaz rapidamente adormece sobre o livro que deveria estudar. Quando desperta sobressaltado por um ruído, depara-se com um duende de rosto enrugado sentado sobre o baú. Nilsa lança sobre ele o apanha-borboletas e tenta divertir-se à sua custa, mas de um momento para o outro vê-se ele próprio enredado nas artimanhas do duende.
A partir daí, transformado num ser minúsculo, confundido ele próprio com um duende, alcunhado de “Polegarzinho”, Nils cruza os céus da Suécia acompanhando o voo migratório de um bando de gansos-bravos, agarrado a um ganso doméstico, rumo à Lapónia. Ao longo dessas viagens, narram-se episódios da vida animal, que nos recordam como todos estamos interligados, mas não são apenas os animais (capazes de falar, embora só o pequeno Nils os compreenda) que aqui figuram como personagens. Aqui encontramos também estátuas vivas, de bronze ou de madeira, e muitas outras surpresas.
Há claramente uma cisão entre a vida rural e a vida citadina – que aqui se torna mais secundária.

É também um livro profundamente ecológico, escrito no início do século, mas que toca já temas que se mantêm essenciais e cada vez mais prementes nos nossos dias, como se pode ler neste discurso proferido pela Mãe-Ursa:
“- Acho que os humanos querem a Terra toda só para eles (…). Mesmo que deixemos as pessoas e o gado em paz e comamos apenas arandos, insetos e folhas, não nos deixam em paz na floresta! Muito gostava eu de saber onde podíamos viver sossegados.” (p. 345)
Há episódios emblemáticos, e que denotam já esta preocupação necessária com a conservação da vida na Terra, como quando uma comunidade em peso sai para plantar árvores numa montanha devastada por um fogo: “era como erigir um memorial às gerações vindouras. Poderiam legar-lhes uma montanha nua e sem árvores. Ao invés, legar-lhes-iam uma floresta magnífica. As gerações vindouras saberiam, assim, que os seus antepassados haviam sido pessoas boas e sábias, e recordá-los-iam com respeito e gratidão.” (p. 468)
Um pequeno tratado de geografia e ecologia, mas também uma elegia a um país profundamente diverso – de zonas montanhosas, regiões de grandes lagos, florestas imensas, planícies sem fim, e um arquipélago de numerosas ilhas – onde em cada recanto as comunidades se adaptaram de forma a tirar o melhor partido do que a natureza lhes dá: “- Temos um grande país! Aonde quer que vá, encontro sempre um novo meio de subsistência para os habitantes da região.” (p. 491)
Não se pense, contudo, que este tom encomiástico que perpassa aqui e ali retira prazer à leitura, pois esta é sobretudo uma aventura de constante maravilhamento e imbuída de magia.

Uma viagem de autodescoberta e de transformação interior, pois no final desta fábula o jovem Nils não será já o mesmo que partiu em viagem. No decorrer da história, o pequeno herói sofre também uma gradual transformação, evoluindo como personagem – e tornando-se uma pessoa melhor, pois, afinal, “um ser pequeno e inteligente pode pôr fim a muitas injustiças” (p. 163).
Perto do final do livro podemos ainda encontrar a própria autora, a ganhar coragem para um projeto de grande envergadura – que é este livro, onde histórias e lendas se intrincam num imenso mosaico.
Selma Lagerlöf nasceu a 20 de novembro de 1858, em Mårbacka, na província sueca de Värmland, e aí viria a falecer a 16 de março de 1940. A sua obra é profundamente inspirada nas histórias de encantar e lendas populares do seu país. Tornou-se, em 1909, a primeira mulher a ser galardoada com o Prémio Nobel de Literatura e em 1914 foi nomeada membro da Academia Sueca. É autora de títulos como A Saga de Gösta Berling (1891), Os Milagres do Anticristo (1897) e O Tesouro (1904).
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