“Saliento a importância da educação de todos os que dão mostras de aptidão e inteligência, e não apenas dos filhos dos privilegiados (…) Ricos e pobres devem conviver durante a vida de estudos, em igualdade de tratamento. Defendo a criação de dotações para os estudantes sem recursos.”
In “Carta de Bruges”, do Infante D. Pedro a seu irmão o Rei D. Duarte, 1426.
A carta de D. Pedro (1392-1449) ao rei e irmão, D. Duarte, conhecida e estudada por cientistas sociais, é desconhecida da maioria da população portuguesa, continua hoje como um marco filosófico e dos valores éticos para a boa governação do País.
A História escrita de Portugal teve um início promissor com as crónicas de Fernão Lopes, mas logo ficou sujeita à tradição conservadora, descritiva e selectiva de factos e personalidades, mitológica e comemorativista, daí que nos vejamos em embaraços se pretendermos compreender as causas dos acontecimentos e movimentos sociais.
Existe escassa reflexão crítica dos relatos da tradição.
Dos filhos de D. João I, a “Ínclita Geração”, destacaram-se o primogénito D. Duarte, sucessor do pai, monarca culto e escritor e o seu irmão D. Pedro Duque de Coimbra, segundo na sucessão, conhecido por “Infante das Sete Partidas” pelas viagens que fez pela Europa com adesão ao renascentismo, regente durante dez anos na infância de Afonso V.
E o Infante D. Henrique? Criação do cronista Zurara, como impulsionador das “descobertas”, panegíricos que secundarizaram a estratégia nacional da expansão marítima das gerações anteriores. Refugiado em Ceuta e depois no Algarve após a capitulação em Tânger, o “Navegador” evitou a corte, era ultrarreligioso, celibatário, poderoso chefe da Ordem de Cristo, homem de negócios, introdutor do esclavagismo,…
Foi Inevitável o confronto entre as visões mercantil da expansão marítima planetária e da grande nobreza feudal pró-henriquina defensora do cristianismo de cruzada e da conquista do Norte de África até Jerusalém. As divergências provocaram intrigas palacianas, provocações contra o ducado de Coimbra, cerco e morte de D. Pedro em Alfarrobeira, o corpo abandonado vários dias e comido por animais o que indignou as cortes europeias.
D. João II, monarca de grande sabedoria e inteligência, educado pela descendência feminina de D. Pedro, incorporou as ideias do tio-avô patentes na Carta de Bruges, enfrentou os duques de Bragança e Viseu, fez a paz com Castela e o tratado de Tordesilhas, a inteligência diplomática foi determinante para as viagens ao Brasil e à Índia.
D. Pedro deixou obra relevante de natureza filosófica-política e do direito.
Com as “Ordenações Afonsinas”, as leis escritas substituíram o costume, desenvolveu a escola de cartografia portuguesa de influência ítalo-maiorquina e intenso comércio com a Madeira e Açores, segundo alguns historiadores de arte D. Pedro é homenageado nos polémicos painéis de São Vicente de Fora atribuídos a Nuno Gonçalves, destinar-se-iam ao seu túmulo na Batalha.
A Carta de Bruges reflecte um pensamento avançado e informado para a época, o final da Idade Média possui actualidade, desperta interesse da história do pensamento político. Na Carta de Bruges D. Pedro sugere que os clérigos tenham cultura, sejam nomeados bispos os “homens livres de escândalo”, critica o excesso de prelados, a carga de impostos sobre os camponeses que provoca o abandono das terras, afirma que se deve dar a cada um “aquilo que lhe é devido e deve dar-lho sem delongas (…). O grande mal está na lentidão da justiça”, assunto de grande actualidade.
A derrota de D. Pedro e dos mais esclarecidos, gente ligada às ciências náuticas e ao comércio intercontinental, marcou um itinerário alternativo para Portugal, obscurantismo, a chegada da Inquisição, perseguição a minorias religiosas e étnicas. a “hereges” e homens de cultura e ciência. Alfarrobeira foi um desastre também para a cultura portuguesa.
A acção da nobreza feudal triunfante culminou com a morte em Marrocos do jovem rei Sebastião a 4 de Agosto de 1578, perda de 10 mil combatentes e da independência nacional, resgates onerosos, união ibérica imposta e comprada como afirmou Felipe II.
D. Pedro escrevera o “Tratado da virtuosa benfeitoria” (1418), explanação dos ideais do Renascimento, “juntamento de homees liados por amigavel dereytura, porque a melhor cousa do mundo, a quall he multidooem dos homees qe per moral unyom son aiuntados”, traduziu do latim entre 1433 e 1438 o “Livro dos Ofícios”, de Marco Túlio Cícero.
As obras de D. Pedro, quando o castelhano era ainda o idioma das elites, são consideradas por alguns linguistas momento maior de evolução e maturação da língua portuguesa.
Fernando Pessoa referiu-se a D. Pedro na “Mensagem”: “…Não me podia a sorte dar guarida/por não ser um dos seus/Assim vivi, assim morri, a vida/Calmo sob mudos céus/Fiel à palavra dada e à ideia tida/ Tudo o mais é com Deus!”.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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