O Postal do Algarve participa da FESTA publicando, ao longo do mês de outubro, uma seleção de textos e poemas relacionados com a temática a cada ano explorada pelos artistas e estudantes envolvidos na realização de cada edição.

(Foto Pedro Santos / A|NAFA)
CARTA A OPHÉLIA QUEIROZ – 5 ABR. 1920. Fernando Pessoa
Meu Bebé pequeno e rabino:
Cá estou em casa, sozinho, salvo o intelectual que está pondo o papel nas paredes (pudera! havia de ser no teto ou no chão!); e esse não conta. E, conforme prometi, vou escrever ao meu Bebezinho para lhe dizer, pelo menos, que ela é muito má, exceto numa coisa, que é na arte de fingir, em que vejo que é mestra.
Sabes? Estou-te escrevendo mas não estou pensando em ti. Estou pensando nas saudades que tenho do meu tempo da caça aos pombos; e isto é uma coisa, como tu sabes, com que tu não tens nada…
Foi agradável hoje o nosso passeio — não foi? Tu estavas bem-disposta, e eu estava bem disposto, e o dia estava bem disposto também (O meu amigo, não. A. A. Crosse: está de saúde — uma libra de saúde por enquanto, o bastante para não estar constipado).
Não te admires de a minha letra ser um pouco esquisita. Há para isso duas razões. A primeira é a de este papel (o único acessível agora) ser muito corredio, e a pena passar por ele muito depressa; a segunda é a de eu ter descoberto aqui em casa um vinho do Porto esplêndido, de que abri uma garrafa, de que já bebi metade. A terceira razão é haver só duas razões, e portanto não haver terceira razão nenhuma. (Álvaro de Campos, engenheiro).
Quando nos poderemos nós encontrar a sós em qualquer parte, meu amor? Sinto a boca estranha, sabes, por não ter beijinhos há tanto tempo… Meu Bebé para sentar ao colo! Meu Bebé para dar dentadas! Meu Bebé para…
(e depois o Bebé é mau e bate-me…) «Corpinho de tentação» te chamei eu; e assim continuarás sendo, mas longe de mim.
Bebé, vem cá; vem para o pé do Nininho; vem para os braços do Nininho; põe a tua boquinha contra a boca do Nininho… Vem… Estou tão só, tão só de beijinhos…
Quem me dera ter a certeza de tu teres saudades de mim a valer. Ao menos isso era uma consolação… Mas tu, se calhar, pensas menos em mim que no rapaz do gargarejo, e no D. A. F. e no guarda-livros da C. D. & C.! Má, má, má, má, má…!!!!!
Açoites é que tu precisas.
Adeus; vou-me deitar dentro de um balde de cabeça para baixo para descansar o espírito. Assim fazem todos os grandes homens — pelo menos quando têm — 1º espírito, 2º cabeça, 3º balde onde meter a cabeça.
Um beijo só durando todo o tempo que ainda o mundo tem que durar, do teu, sempre e muito teu
Fernando (Nininho).
5.4.1920
Cartas de Amor.Fernando Pessoa.
NOTA: A FESTA DOS ANOS DE ÁLVARO DE CAMPOS 2019 decorre até ao próximo dia 30 de novembro, em Tavira, com poesia, momentos musicais, cinema, jantares vínicos, exposições, entre outros eventos, cujo programa pode acompanhar AQUI.