O Postal do Algarve participa da FESTA publicando, ao longo do mês de outubro, uma seleção de textos e poemas relacionados com a temática a cada ano explorada pelos artistas e estudantes envolvidos na realização de cada edição.

(Foto José Rosa / A|NAFA)
CARTA A OPHÉLIA QUEIROZ – 26 SET. 1929. Fernando Pessoa
Ophelinha pequena:
Não sei se gosta de mim, mas venho escrever-lhe esta carta por isso mesmo.
Como me disse que amanhã evitava ver-me até às 5 1/4 para as 5 1/2 na paragem do elétrico que não é de ali, ali estarei exatamente.
Como, porém, se dá a circunstância de o sr. eng. Álvaro de Campos ter que me acompanhar amanhã durante grande parte do dia, não sei se será possível evitar a presença — aliás agradável — desse senhor durante a viagem para umas janelas quaisquer de uma cor que me esquece.
O velho amigo meu, em quem acabo de falar, tem, aliás, qualquer coisa que lhe dizer. Recusa-se a fazer-me qualquer explicação do que se trata, mas espero e confio que, na sua presença, terá ocasião de me dizer, ou lhe dizer, ou nos dizer, de que se trata.
Até então estou silencioso, atento e até expetativo.
E até amanhã, boquinha doce,
Fernando
26/9/1929
Cartas de Amor.Fernando Pessoa. (Organização, posfácio e notas de David Mourão Ferreira. Preâmbulo e estabelecimento do texto de Maria da Graça Queiroz.) Lisboa: Ática, 1978 (3ª ed. 1994).
PARAGEM. ZONA. Álvaro de Campos
Tragam-me esquecimento em travessas!
Quero comer o abandono da vida!
Quero perder o hábito de gritar para dentro.
Arre, já basta! Não sei o quê. mas já basta…
Então viver amanhã, hein?… E o que se faz de hoje?
Viver amanhã por ter adiado hoje?
Comprei por acaso um bilhete para esse espectáculo?
Que gargalhadas daria quem pudesse rir!
E agora aparece o eléctrico — o de que eu estou à espera —
Antes fosse outro… Ter de subir já!
Ninguém me obriga, mas deixai-o passar, porquê?
Só deixando passar todos, e a mim mesmo, e à vida…
Que náusea no estômago real que é a alma consciente!
Que sono bom o ser outra pessoa qualquer…
Já compreendo porque é que as crianças querem ser guarda-freios…
Não, não compreendo nada…
Tarde de azul e ouro, alegria das gentes, olhos claros da vida…
28-5-1930
Álvaro de Campos – Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. – 123. – 15.
NOTA: A FESTA DOS ANOS DE ÁLVARO DE CAMPOS 2019 decorre até ao próximo dia 30 de novembro, em Tavira, com poesia, momentos musicais, cinema, jantares vínicos, exposições, entre outros eventos, cujo programa pode acompanhar AQUI.