Na experiência de viver, não sabia que nome dar àqueles dias sem vida, povoados de uma intensa névoa, sem brilho no seu despertar. Era como se tivessem saído de trincheiras, acantonados num pardacento anteontem, alheios a preces, feitos nados mortos, vagueando, sem norte, por atalhos desconhecidos. Que poderiam estes dias interessar a um calendário que faz tão estranhas as nossas vidas?
Entrara no redemoinho de Alzheimer, tendo começado a sentir a sua mente a encolher sob os seus pés. Deixara de reconhecer os que lhe eram queridos, sem que ninguém soubesse como poderia evadir-se daquela mente. Insistia ter sido roubada pela cuidadora e era incapaz de reconhecer o rosto da filha, fazendo com que esta se sentisse órfã de mãe ainda viva. Tinha os olhos baços acusando desorientação, passos bêbados trocando o lugar das coisas, feita zombie no discernimento, como se apenas um morto se atrevesse a respirar dentro dela.
É terrível possuir uma doença em que a gente chama pelo outro sem qualquer esperança que ele nos possa retorquir. Uma doença puta, daquelas que nos obrigam a deixarmos de ser pessoas, assim poderia apelidá-la António Lobo Antunes.
Ah! O quanto seria desejável procrastinarmos, enxotarmos, sacudirmos estas ideias atormentadoras, evitar tropeçar nelas, expondo-nos apenas em sorridentes e contagiantes fotos para a ruidosa ribalta das redes sociais, como se pretendêssemos que os dias e os Outros se sentissem induzidos a felicitarem-nos pelo sucesso da nossa existência.
E o nosso problema existencial comum, achado pela equívoca demência que terá desencadeado a destruição do cérebro de Nietzsche, não é mais o de que Deus possa estar morto. Antes reside nessa ideia genial de que a nossa demência possa fazer parte integrante do castigo advindo da nossa perplexidade diante do facto de Deus ter feito todos os milagres, inclusive o da criação do universo, aprofundando o absurdo da nossa existência solitária, por nem sequer ter-nos escrito um livro dando testemunho dos seus feitos gloriosos.
A vida já não parece esperar por nós. É terrível possuir uma doença em que a gente chama pelo outro sem qualquer esperança que ele nos possa retorquir. Uma vez perdidos, nesse universo esfacelado, não suspeitávamos que aquela sinistra doença pudesse vir a ser o nosso cadafalso. Só ela é capaz de dominar a maior solidão dos seres, sem que eles a sintam. E o pior é que parece que muitos de nós, ou quase todos, nesta desorientação, estamos à beira de perder a nossa capacidade critica, consumindo toda a ilusória imagiologia das redes.
Bem sei que todos estes SE(S) não são nada consoladores, que importa que façamos um esforço para que os coloquemos de parte, como quem enterra a cabeça na areia, fingindo que andamos de braços entrelaçados com o mundo, que somos uns seres imunes à doença, inundados de felicidade e bem-sucedidos na vida.
Não preferimos mais a reserva à exposição, o recato à ribalta, a rejeição de sombras, obcecados que estamos por luzes, claridades sintéticas que se oferecem como imaculadas vitrines, árvores artificiais de superfícies comerciais, brilhos sem interrogações, obscuros amores pelas redes sociais, felicidade sem brechas, seja a que preço for.
Somos impotentes. Apenas conseguimos oferecer às infelizes rugosidades e teimosas deteriorações das nossas mentes, a oposição de milagres estéticos de corpos perfeitos, adornados por botox a granel, como receita para a espécie de surto psicótico sofrido com as alucinações visuais que tomam a superficialidade estética pela realidade, como aditivo externo da nossa autoestima, erigindo-a à condição de cetro da saúde mental em que pouco se aposta.
Se os nossos corpos são bússolas estéticas, obras de arte inacabadas, plásticas, passíveis de serem moldadas ou aperfeiçoadas, se estes corpos já são apenas o que nos resta do que somos e do que temos, se eles não são mais desmerecidos como foram na Idade Média, qual a razão para que não os entreguemos aos jogos de provocação e consumo de hoje, deixando as mentes à livre fragilização dos atalhos de Alzheimer?
Seremos hoje, neste “admirável mundo novo”, apenas um albergue recôndito de algumas das mutações mediáticas de corpos animados de uma imensa carga de representação estética, desfocada das nossas mentes, até que deixemos de morar neles?
Farão estas problematizações algum sentido, ou merecerão melhor diagnóstico, tomando este por inconclusivo, que por certo o será?
Leia também: Da negação ao incentivo do racismo | Por José Figueiredo Santos