Noite, de Elie Wiesel, publicado pela Dom Quixote, com tradução de Paula Almeida, é o relato na primeira pessoa de uma realidade atroz e inimaginável.
Nascido em 1928 no seio de uma família judia na Roménia, Elie Wiesel dá-nos o seu testemunho de como, em adolescente, o inverosímil acontece. Corre o ano de 1941. Muito raramente chegam histórias, pela boca de um improvável sobrevivente, de que os judeus são deportados e levados para florestas recônditas, onde são abatidos junto de valas que eles mesmo escavaram. Mas ninguém acredita. Na Primavera de 1944, correm por fim notícias maravilhosas da frente russa de que a Alemanha foi derrotada. Na altura, ainda seria possível comprar certificados de emigração para a Palestina. O jovem Elie implora ao pai que o faça, mas Hitler parece derrotado e incapaz de lhes fazer mal. Até que apenas três dias depois a sua família, e o bairro inteiro, é empurrada para um vagão de carga e transportado primeiro para Auschwitz e, depois, para Buchenwald.
Num ritmo acelerado, conforme o horror dos eventos que experienciou se precipitam, como a morte dos pais e da irmã de apenas oito anos (a cuja memória o livro é dedicado), o autor reconstrói a sua memória (por vezes com pequenas prolepses) numa comovedora e eloquente narrativa, não obstante o desconcerto do mundo narrado: é recorrente o narrador exclamar que não conseguia acreditar no que via e quase se beliscava. É permanente o profundo espanto e constantes as reflexões que interpelam o leitor, como quem tenta despertar-nos para o lado mais negro da natureza humana. Contudo, a realidade é de tal forma indescritível, que gradualmente o narrador adopta um tom quase distanciado, conforme o seu único foco se torna a sobrevivência.
Ao leitor resta encontrar a coragem para avançar no relato dos eventos ocorridos em Auschwitz. Os atos desumanos a que Elie assiste levam-no a duvidar da sua própria natureza como homem; simultaneamente, é assolado pela crescente descrença num possível Deus.
Em poucos dias, assassinam o seu Deus e assassinam a sua alma, deixando-o vazio, imerso numa profunda noite. Uma só noite é também o quanto basta para que a alma fica marcada a ferro e fogo:
“Nunca esquecerei aquela noite, a primeira noite no campo, que fez da minha vida uma noite longa e sete vezes aferrolhada” (p. 11).
Contudo, sabe o leitor hoje, também ao ler este precioso e infelizmente tão necessário livro, que o autor conseguiu libertar-se dessa irrevogável escuridão da alma. Até à sua morte em 2016, em Nova Iorque, Elie Wiesel dedicou a sua obra às memórias do Holocausto e à defesa das vítimas de perseguição. Recebeu o Prémio Nobel da Paz em 1986 pelo «trabalho em defesa da paz, da redenção e da dignidade humana». Noite vendeu mais de seis milhões de exemplares.
Wiesel fez parte do Conselho do Memorial do Holocausto dos Estados Unidos, tendo tido um papel importante na criação do Museu do Memorial do Holocausto em Washington. Foi professor nas universidades de Columbia, City University de Nova Iorque, Yale e Boston, onde ensinou Estudos Judaicos e Humanidades e Pensamento Social. Recebeu inúmeras distinções: a Medalha Presidencial da Liberdade (EUA), a Medalha de Ouro do Congresso dos Estados Unidos da América, a Grã-Cruz da Legião de Honra francesa, o título de Cavaleiro da Ordem do Império Britânico, o colar de Grande Oficial da Ordem da Estrela da Roménia e o Prémio da Academia Americana de Artes e Letras.
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