K como Kolónia — Kafka e a descolonização do imaginário, de Marie-José Mondzain, com tradução de Luís Lima, com a chancela da Orfeu Negro. Particularmente relevante para os estudiosos de literatura, filosofia ou cultura, este é outro daqueles preciosos ensaios que esta editora tem vindo a publicar entre nós, como Pode a subalterna tomar a palavra? ou Questões de Género.
Marie-José Mondzain, filósofa e autora de obras como A Imagem Pode Matar? e Homo Spectator – Ver, Fazer Ver (Orfeu Negro, 2015), parte das narrativas visionárias de Franz Kafka para reflectir sobre o poder político do imaginário colonial. A autora não incorre numa análise crítico-literária exaustiva de Kafka. Selecionando dois breves textos, O Desaparecido e Na colónia penal, e ocasionalmente recorrendo ainda aos seusDiários de Viagem, a autora consegue dar nova vida e encarar textos de um autor judeu branco, que nunca pisou solo africano, à luz da descolonização… O autor deitou contudo singular atenção à condição do negro na América.
“Kafka imaginou o pior dos aparelhos de morte de toda a humanidade, numa ilha árida e ardente, que poderia então ser africana e assemelhar-se à Europa ou até mesmo ao mundo de hoje.” (p. 19)
Pegando em alguns episódios, e mediante a leitura de algumas passagens, o seu pensamento evolui de forma espiralar, em breves capítulos, num discurso claro, impregnado de lirismo e pontuado com frases lapidares, contrapondo de forma inteligente a questão da colonização com a do antissemitismo, nomeadamente na forma como uma máquina de guerra é uma outra forma de exploração capitalista.
Nas palavras da própria autora: “Este livro assume a forma de uma deambulação dispersa ou enganosamente dispersa, já que tenho procedido à leitura de Kafka por associações múltiplas, derivando incessantemente ao longo da narrativa. Estas associações podem ser biográficas, históricas, literárias, teatrais e cinematográficas.” (p. 19)
Ainda que por vezes as teorias da autora pareçam ir demasiado longe, como quando encara os genocídios ocorridos em África como experiências laboratoriais do Holocausto que depois tem lugar na Europa, tudo conflui e se interliga neste ensaio: as memórias de infância e juventude numa Argélia colonial; o colonialismo; as colónias penais de reeducação; o Holocausto; a escravatura; o capitalismo como nova forma de dominação; o totalitarismo; a colonização do imaginário como forma de subjugação dos povos; a legitimação da violência colonial pelo poder religioso; o atual medo da Europa e o seu fechamento face às hostes advindas das antigas colónias; um outro extremo de um imaginário colonialista que incide na exploração sensual do corpo negro na pintura e no cinema; a escrita originada numa ferida e o poder imagético da literatura que antecipa eras futuras.
Marie-José Mondzain, uma das mais conhecidas pensadoras francesas da atualidade, é directora de investigação emérita do Centre National de la Recherche Scientifique, em Paris. Referência fundamental do pensamento contemporâneo, tem contribuído para o debate vital acerca do poder persuasivo das imagens, articulando a estética com a ética.