Nunca o átrio dos tribunais tinha juntado tanta gente. Indignado, um interlocutor dirigiu-se-me, num súbito e inesperado desabafo: – A nossa classe política bateu no fundo, ao descer, de forma tão apressada no elevador social de Santa Justa. Por muito que dê voltas à cabeça, não compreendo porquê, quando se fala de democracia, qual a razão para não exigirmos que o termo, que quer dizer um governo de todos, não seja levado a sério.
No meu fraco entendimento, para ele era óbvia a lucidez de Rousseau de que o poder que conferimos àqueles indivíduos só poderia conduzir à divisão dos homens em fracos e fortes, o que nos pode afogar em violência, suspendendo a própria política.
A seu ver, a classe política acabaria por ser um espaço de antipolítica, ao lançar a política nas mãos do Estado, deixando que este trabalhasse uma agenda secreta de governança a seu belo prazer. Ele, que se reconhece descendente do liberalismo, não sabia como é que o Estado, na defesa de interesses individualistas, poderia fazer com que os indivíduos pudessem chegar a uma ideia cidadã de comunidade sem a tal serem forçados.
Enquanto isso, achava que os políticos atuais tinham entrado numa pardacenta decadência com a perda de classe e do encanto, que lançava a sua confiabilidade nas ruas da amargura. A transformação da sociedade portuguesa estaria a passar-lhes ao lado, dando continuidade a desafetos com os eleitos e abusos de poder para ganhos pessoais. Uma vez apanhados nas alcatifas do mando, iriam corroer a política universalista do Estado Social, para se enredarem em jogos de distribuição de favores e de paliativos económicos, pensando, com isso, serenar os descontentamentos de algum eleitorado menos devoto.
Daquele encontro amistoso, transpareceria a sua perplexidade com o menosprezo dos candidatos à inteligência do povo. Pigarreou um instante, para clarear a voz e inquiriu-me: – Você já viu isto? O pessoal volta a levar à cena aquele descabelado propósito de fazer uma política para todos os portugueses, através de um simples apagamento de memórias do cartão de militante, entregando-o ao partido.
E continuava, danado: – Puxam dos galões da experiência política acumulada, remetendo para todos nós um óbvio emburrecimento, como se a praxis política não fosse agirmos e falarmos em conjunto, como uma força para a criação e preservação de um mundo comum.
Acrescentava, irónico: – Destituídos da preciosa sabedoria adquirida nos suores das universidades de verão e de fins de semana, os gajos já não disfarçam a superficialidade com a cordialidade, nem a ignorância com os afetos. Não sabem mais preencher os tempos de antena com a honra ou a graça de um “olhe que não, senhor doutor, olhe que não”. Cândidas e civilizadíssimas criaturas, como só eles, não podem deixar espaço a homilias de “aventureiros”, porque isto da política é preciso ter uma especial arte e sapiência para fazer rolar jogos de sombras, palavras e interesses.
E, voltando à carga, diante do meu silêncio circunspecto, perante a sua aversão ao princípio de dominação como correlato obrigatório da política, ele insistia, resmungando: – Se a política é a ação livre de muitos e desejavelmente de todos, que jeito tem esta malta insistir na confusão entre a política e a arte de governar?
E prosseguia, insistindo no desabafo: – Depois dizem que o cargo deve ser exercido por quem tem experiência política. Que democracia é esta em que há predestinados pela experiência? Então mais vale preparamos monarcas.
Ora, quem vive a era das redes sociais e da desinformação, bem sabe que a política está a atravessar uma profunda crise. Basta-lhe uns sound bites de 10 segundos, para celebrar a ignorância e esfregar as mãos de contentamento com o declínio do pensamento científico. Nas suas mentes polidas pelo brilho das medalhas que colocam ao peito, só pululam os algoritmos simples das redes, deambulando entre preconceitos mesquinhos e maldades instintivas. É tudo tão superficial que apenas sabem fazer deslizar o Estado entre o mínimo e o máximo, o público e as pêpês do privado e do setor social. Velhas e carunchosas receitas, que nada de novo proporcionam aos que, não obstante saberem que é uma evidência a nossa saturação com apodrecimento do sistema político, continuam a tratar a guinada do povinho como se de um mero capricho populista se tratasse, derretido que está com a simpatia política que evidencia preocupar-se com a vida dos mais humildes.
– Esquecem que este descontentamento é o reflexo de décadas de práticas repetidas, de clientelismo descarado, da indiferença ao mérito, para testarem a nossa divina paciência – declarava, já enxofrado.
Interrompi-o, subitamente, deixando-o surpreso: – Sim, é um facto! Mas nós não temos de banir a política do mundo. Antes temos de nos libertar dos preconceitos que minam a política, sempre que os cidadãos se reúnem num espaço público para deliberar e decidir sobre assuntos de interesse comum. Depois das desumanas experiências totalitárias do século XX, não podemos deixar de continuar a desejar a política, à vista do deserto contemporâneo que cresce a par do triunfo do neoliberalismo e das turbulências da atualidade.
Vendo que eu partilhava as suas perplexidades, serenou, colocando-me a mão no ombro e pronunciando algumas palavras com o aprumo de classe de quem sabe ser espirituoso: – Oh amigo, deixe-se de utopias! A imprevisibilidade da vida pública sempre acaba com o poder da promessa dos feiticeiros a tornar-nos capazes daquele comprometimento que, de forma irracional, nos vacina da política.
Perante tais argumentos, fechei o assunto com uma nota de rodapé, pensando com os meus botões: – Ah! Quem me dera que todas estas perplexidades amanhecessem apenas como uma mera e despropositada retórica.
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