A proposta de paz feita pelo Presidente Zelensky é o pretexto para este pequeno texto de reflexão. Façamos a contextualização do problema e avaliemos a sua veromilhança. Quando observamos o desenvolvimento da guerra entre a Ucrânia e a Rússia não podemos deixar de pensar até que ponto este conflito é instrumentalizado pelas duas grandes potências incumbentes, os EUA e a China, que, por essa via, direta ou indiretamente, potenciam um risco disruptivo iminente, tanto no projeto político da integração europeia como no projeto político da Federação Russa. A curto e médio prazo, este é, porventura, o impacto geopolítico mais substancial desta guerra, para além, obviamente, da destruição material de um país, que não de uma nação.
A situação atual da guerra é algo paradoxal e pode ser descrita do seguinte modo: os riscos disruptivos estão iminentes, mas estão em suspenso, devido à definição de linhas vermelhas pelas principais potências incumbentes. E quais são essas linhas vermelhas? A utilização de armas de destruição massiva, nucleares, químicas, cibernéticas ou biológicas, por qualquer das partes, a entrada direta dos EUA, da Nato ou da China no conflito, a invasão de um país Nato pela Rússia, a emergência de Estados relutantes e autoritários na União Europeia, sem contar, obviamente, com todos os cisnes negros que podem emergir a qualquer momento. Dito isto, a tragédia atual pode enunciar-se deste modo: o único risco disruptivo permitido e a única linha vermelha que pode ser ultrapassada é a destruição sistemática e diária da vida coletiva e individual na Ucrânia.
No atual contexto, a geopolítica do Indo-Pacífico é, nesta altura, mais prioritária para as relações EUA-CHINA do que a geopolítica das relações euro-asiáticas entre a Europa e a esfera de influência russa. Em consequência desta ordem de prioridades, tanto a Europa (e a União Europeia) como a Ucrânia e a Rússia são peças de um xadrez mais complexo e instrumentos de condicionamento e manipulação que as potências incumbentes têm de administrar, arbitrar e regular com variações que nem sempre são entendíveis por todas as partes em confronto.
O curso do conflito, se quisermos, a geoestratégia global do conflito, pode ser observado em três áreas fundamentais. Em primeiro lugar, o modo como são realizados os alinhamentos necessários com as duas grandes esferas geopolíticas em confronto diz-nos como a geopolítica toma conta da geoeconomia. Em segundo lugar, o modo como são acomodados os grandes riscos globais é um bom revelador deste grande reajustamento geopolítico. Em terceiro lugar, o modo como a internet é, também ela, instrumentalizada, se quisermos, balcanizada, para responder ao modelo digital global que melhor salvaguarda as áreas de influência dos dois blocos incumbentes, EUA e CHINA.
No primeiro caso, o alinhamento geopolítico por causa da guerra tem um preço em termos de comércio global, sobretudo no que diz respeito à logística das grandes cadeias globais de abastecimento de produtos essenciais, dos combustíveis aos alimentos, e das tecnologias aos materiais raros. A inflação está aí para o provar. Por outro lado, as reuniões internacionais no plano regional, na Ásia Central, no Indo-Pacifico ou em África, mostram como os dois blocos hegemónicos procuram condicionar e arregimentar os seus parceiros, segmentando o comércio global e exigindo lealdade política sempre que a força das circunstâncias assim o determinar. Para lidar com esta segmentação geopolítica do comércio global os EUA estão a promover o friend-shoring que é uma abordagem sistemática para lidar contra os riscos globais e estabelecer parcerias confiáveis tendo em vista evitar tentações protecionistas e retaliações desnecessárias. O friend-shoring é promovido por via de uma ampla gama de compromissos multilaterais e bilaterais para cadeias de abastecimento mais seguras em setores como a energia solar, os semicondutores e os materiais raros. Mas a China faz o mesmo com os países emergentes e os países em desenvolvimento através dos seus investimentos geoestratégicos.
Em segundo lugar, esta abordagem sistémica do friend-shoring não se aplica apenas ao comércio de mercadorias, mas, também, a uma tipologia de grandes riscos globais que não cessa de crescer e que segmenta ainda mais os fluxos comerciais e as grandes cadeias de abastecimento. Com efeito, os riscos pandémicos, climáticos, cibernéticos, securitários, de violação dos direitos humanos fundamentais e do ambiente, recomendam-nos que a segurança privada tenha em devida conta a segurança nacional em áreas fundamentais como a energia, os semicondutores e os materiais raros, bem como, o respeito pelas regras de sustentabilidade e as obrigações decorrentes dos acordos sobre o clima.
Em terceiro lugar, o desenvolvimento das grandes plataformas tecnológicas não pode ficar entregue ao laisser faire do mercado livre nas principais áreas do hardware, software e redes globais. O contencioso com a Huawai por causa da rede 5G, a lei chips americana, o reforço da produção de energias renováveis e a nova estratégia para a inteligência artificial, os acordos em matéria de terras raras e as novas cadeias de produção de baterias, são sinais bem reveladores das consequências da guerra sobre a geopolítica global, para lá dos impactos diretos, dramáticos e trágicos, sobre os dois beligerantes em confronto. As plataformas tecnológicas globais serão cada vez mais instrumentalizadas e tentadas a balcanizar a própria internet à medida que os efeitos da guerra se expandem no espaço e prolongam no tempo e um universo dantesco de coerção política sistemática invada as liberdades públicas e a privacidade individual.
Notas Finais
Parece evidente que uma paz russa (nas condições russas) não é aceitável para o lado ocidental, pois criaria um risco disruptivo muito sério para a Nato e a União Europeia. Do mesmo modo, uma paz ucraniana (nas condições ucranianas) não seria aceitável para a Federação Russa e os seus próximos, a China em primeira instância, mas esta por razões mais abrangentes que têm a ver com o controlo dos riscos e danos globais antes referidos. Conhecemos, para já, a proposta de paz de Zelensky, mas a situação é de tal modo crítica que não consente, para já, nenhuma iniciativa nesse sentido. O risco disruptivo iminente da União Europeia e da Federação Russa fica, assim, para já, em suspenso, mas pode precipitar-se, a qualquer momento, se uma conferência de paz não congelar rapidamente o conflito e ele tiver tendência para se arrastar sem fim à vista. Se esta conferência de paz, patrocinada, por exemplo, pelo Conselho de Segurança e pelo Secretário Geral das Nações Unidas, que precisam urgentemente de fazer prova de vida, não mostrar alguns sinais de vida a breve prazo, por exemplo até ao final do 1º semestre de 2023, iremos assistir não apenas a um endurecimento e deterioração progressiva dos sistemas político-económicos da União Europeia e da Federação Russa, mas, também, a um regresso do mundo bipolar, desta vez liderado pelos EUA e a China, com consequências imprevisíveis sobre a geopolítica e a geoeconomia globais. A única certeza para já é um friend-shoring crescente em todas as frentes, enquanto todos parecem aguardar o pretexto que falta para o início oficial da 3ª guerra mundial, aquele em que a Federação Russa decidir considerar que foi atacada pelas forças da Nato no seu próprio território.
Artigo publicado no jornal Público.
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