“As pessoas têm de estar no centro de todas as nossas políticas. Por isso, desejo que todos os europeus contribuam ativamente para a Conferência sobre o Futuro da Europa e desempenhem um papel de liderança na definição das prioridades da União Europeia. Apenas em conjunto conseguiremos construir a nossa União de amanhã.”
Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia
A reflexão sobre a Europa Que Queremos, vem responder à Conferência sobre o Futuro da Europa preparada durante a presidência portuguesa da União Europeia, no primeiro semestre de 2021, tendo como objetivo mobilizar a participação democrática dos cidadãos, que são convidados a exercerem uma cidadania ativa sobre o que desejam para os destinos da Europa, através de propostas concretas apresentadas em debates com os decisores europeus, numa política de aproximação e de diálogo com os cidadãos. Esta conferência está previsto prolongar-se até à Primavera de 2022 e envolve as três instituições da União Europeia (UE): o Conselho, o Parlamento e a Comissão, numa congregação de esforços, para promoverem um espaço de debate com os cidadãos europeus, para os envolver na resposta aos desafios da União, discutir os atuais problemas e estabelecer as prioridades. O conselho executivo desta iniciativa é copresidido por membros destas três instituições, a saber: o secretário de Estado Gasper Dovzan do Conselho, o eurodeputado Guy Verhofstadt e a vice-presidente da Comissão, DubravKa Suíça.
De facto, pela primeira vez, os cidadãos da UE estão a ser convidados a pronunciarem-se sobre a Europa que querem, através de uma plataforma digital e eventos presenciais, à distância e híbridos. Na plataforma digital interativa multilingue, os cidadãos partilham online as suas ideias, e também nos eventos online, presenciais ou híbridos, bem como nos Painéis de Cidadãos
Europeus, através de fóruns de debate e apresentação e votação de propostas e plenários da conferência, debatidas na presença de 108 deputados do Parlamento Europeu, 54 do Conselho, três da Comissão e 108 de todos os parlamentos nacionais. Este exercício começou logo no primeiro Painel de Cidadãos, em setembro de 2021, em que estiveram presentes europeus dos 27 países, de todas as idades e origens, convidados a apresentarem a sua visão da UE e a discutirem o presente e o futuro da União, moderados por Katherine Collin Hagan. Participam também as autoridades europeias, nacionais e locais, e toda a sociedade civil, podendo, para isso, organizar eventos ou participar com propostas sobre o Futuro da Europa. Há nove tópicos principais: alterações climáticas/ambientais; saúde; economia/justiça nacional/emprego; União Europeia no mundo; valores/direitos/Estado de direito/segurança; transformação digital; democracia europeia; migração; educação/cultura/juventude/desporto. A estes podem ser acrescentados outros, ou seja, trata-se de um debate sobre o futuro do projeto europeu no seu todo e um verdadeiro exercício de democracia europeia participativa.
Os valores europeus — democracia, direitos, Estado de direito, segurança, entre outros — estão contidos na Declaração Comum sobre a Conferência sobre o Futuro da Europa, cujo título, “Diálogo com os Cidadãos pela Democracia”, define o seu âmbito e objetivo, quando acrescenta: “Construir uma Europa mais resiliente.” Podemos ler neste documento que instituiu a CoFoE: “Há 70 anos, a Declaração Schuman lançou as bases da nossa União Europeia. Deu início a um projeto político único que trouxe paz e prosperidade e melhorou a vida de todos os cidadãos europeus. Importa agora refletirmos sobre a União, os desafios que enfrentamos e o futuro que queremos construir em conjunto, com o objetivo de reforçar a solidariedade europeia”, ficando claro que se pretende uma “Europa centrada nos cidadãos”, num processo “aberto, inclusivo e transparente”. Reflita-se também como as crises continuam a ser o motor da construção europeia: “Desde a sua criação, a União Europeia tem ultrapassado múltiplos desafios. Com a pandemia de covid-19, o modelo ímpar da União Europeia foi posto em causa como nunca antes. A Europa pode e deve também retirar ensinamentos destas crises, envolvendo estreitamente os cidadãos e as comunidades.” Este compromisso de envolver os cidadãos é explícito, quando lemos: “Nós, presidentes do Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão Europeia, queremos que os cidadãos se juntem a este diálogo e tenham uma palavra a dizer sobre o futuro da Europa. Comprometemo-nos, em conjunto, a ouvir os europeus e a dar seguimento às recomendações formuladas pela conferência, no pleno respeito das nossas competências e dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade consagrados nos tratados europeus. Aproveitaremos a oportunidade para sustentar a legitimidade democrática e o funcionamento do projeto europeu, bem como para congregar o apoio dos cidadãos da UE aos nossos objetivos e valores comuns, dando-lhes mais oportunidades para se exprimirem.”
Por último, refira-se que a conferência, a sua governação e os eventos organizados no seu quadro baseiam-se também nos
valores da UE consagrados nos tratados da UE e na Carta Europeia dos Direitos Fundamentais. Como sinal de esperança fica o aumento da afluência às urnas nas eleições europeias de 2019, que poderá refletir o interesse crescente dos cidadãos europeus em desempenhar um papel mais ativo na decisão do futuro da União e das suas políticas. O futuro o dirá!
Outro marco importante desta Nova Europa dos Cidadãos que se pretende foi o discurso de 2021 sobre o estado da União proferido pela presidente Ursula von der Leyen, em Estrasburgo, a 15 de setembro de 2021, que pretende “fortalecer a alma da nossa União”. É também um regresso aos ideais dos fundadores da Europa, podendo ler-se: “Robert Schuman afirmou, em tempos: a Europa necessita de uma alma, de um ideal, e da vontade política para servir esse ideal. A Europa deu vida a estas palavras nos últimos 12 meses.”
Num discurso assertivo, fica a convicção de que as crises são oportunidades de crescimento, e de que “o nosso espírito — a nossa alma — só revela verdadeiramente o seu esplendor quando é posto à prova”, numa Europa unida na adversidade, partilhando e aprofundando os valores europeus e dando alma a essa Europa, dando a voz aos cidadãos, envolvendo particularmente os jovens, num futuro Programa Alma. Contudo, se queremos efetivamente moldar a nossa União à sua imagem, os jovens devem poder moldar, eles próprios, o futuro da Europa. A nossa União precisa de uma alma e de uma visão de futuro com que os jovens se identifiquem”. De facto, e citando Jacques Delors: “Como poderemos construir a Europa, se os jovens não a virem como um projeto coletivo e uma representação do seu próprio futuro?”
Trata-se de construir uma Europa alicerçada na democracia e nos valores comuns, alicerces europeus dos “fundadores após a II Guerra Mundial”, valores que “derrubaram a cortina de ferro, valores que uniram os defensores da liberdade há mais de 30 anos” pela democracia, liberdade de eleger o próprio governo, o
Estado de direito, a igualdade de todos perante a lei, liberdade de expressão, por todos os “extraordinários valores europeus”, na expressão do antigo Presidente da República Checa Vaclav Havel. Como reconhece Ursula von der Leyen, estes valores são o fruto da herança cultural, religiosa e humanista da Europa. Fazem parte da nossa alma, são uma parte essencial daquilo que somos hoje, e estão consagrados nos tratados europeus, que os Estados se comprometeram a respeitar e se torna necessário aprofundar numa União com alma. É este o futuro para a Europa.
Podemos perguntar-nos se estamos, de facto, perante uma genuína originalidade no processo de construção europeia, ou antes no regresso à visão dos fundadores do projeto europeu, muito particularmente dos pais fundadores, e também das grandes figuras europeias, que deixaram uma herança para o futuro da construção europeia. Foi um dos seus pais fundadores, Jean Monnet, a reconhecer a fragilidade desta Europa: “A Europa jamais existiu. Não é a adição de soberanias reunidas em conselhos que cria uma entidade. É preciso criar verdadeiramente a Europa, é preciso que esta se manifeste face a si própria e face à opinião americana e que ganhe confiança no seu próprio futuro.” Ele próprio conta nas suas Memórias as dificuldades sentidas para construir a Europa, uma “Europa à procura de si mesma”.
A Declaração Schuman de 9 de maio ia nesse sentido, como observou Jean Monnet: “A paz mundial não poderá ser salvaguarda sem esforços criadores à medida dos perigos que a ameaçam. O contributo que uma Europa organizada e viva pode dar à civilização é indispensável à manutenção de relações pacíficas.” Em tantas versões do documento referido, esta introdução subsistiu sem alterações. A Europa deveria ser organizada numa base federal, mesmo que alcançada inicialmente, apenas, na vertente económica. Os objetivos e o método da Comunidade Europeia estavam lançados. Agora só seria necessário avançar: “A França agiu e as consequências da sua
ação podem ser imensas. Esperamos que o sejam. A França agiu essencialmente pela paz. Para que a paz possa verdadeiramente ter a sua oportunidade, é preciso, primeiro, que haja uma Europa.”
Também os políticos compreenderam a necessidade de construir uma Europa com rosto, uma Europa com alma, a substituir aquele “Objeto Político Não Identificado” – OPNI – que chamaria a atenção de Jacques Delors. Esta nova Europa, que precisa dos europeus para sair da encruzilhada do momento presente, não é uma Europa de estados unidos (esta já mostrou estar esgotada). Esta Europa terá de ser uma Europa dos europeus unidos, tarefa bem mais difícil de concretizar, mas com um destino bem mais promissor.
A Europa encontra-se numa encruzilhada. Que caminho seguir? Uns pensam que há Europa a mais. Outros consideram que há Europa a menos. Todos procuram um futuro para a Europa. A construção europeia só poderá continuar se tiver como fundamento uma ideia, além de todas as concretizações económicas ou jurídicas, que lhe garanta um futuro. É preciso ter confiança no futuro. As coisas grandes chegam pouco a pouco. Como reconhecia Jean Monnet, as raízes da comunidade já eram fortes no seu tempo, e acreditava que um dia os “Estados Unidos da Europa” seriam realidade. Não queria antecipar o futuro considerando a mudança imprevisível. Vivia no presente: “Amanhã é outro dia… Bastam as dificuldades de cada dia.” Esse amanhã já chegou e os políticos perceberam que era preciso “dar uma alma à Europa”!
Tendo como lema “Unida na diversidade”, a Europa pretende agora concretizar a ideia de uma identidade fundamentada na pluralidade cultural, (re)inventar a Europa, afinal, uma “utopia interessante”, como reconhece Eduardo Lourenço, embora seja também a “casa da impotência”. A título de exemplo refiram-se as propostas do cineasta Wim Wenders e do filósofo György
Konrad, que defendem relançar a ideia europeia pela cultura; o escritor Georgi Gospodinov, que julga necessário reinventar o “desejo de Europa”; ou o historiador Timothy Garton Ash, que propõe que a nossa nova História seja tecida com seis fios, cada um deles representando um objetivo europeu comum. Estes fios são os valores europeus: a paz, a liberdade, a diversidade, o direito, a solidariedade e a prosperidade. A União Europeia é uma comunidade de valores.
No entanto, além da genuína falta de unidade europeia, o pragmatismo político tem funcionado, sobretudo em momentos de crise, em que a Europa tem reagido surpreendentemente com uma certa coerência e união, mas “em termos políticos não há cabeça para a Europa, porque não há União Europeia nesse sentido”.
Então, “o que é a Europa? Nada!”. A perplexidade da resposta de Eduardo Lourenço revela a essência do problema europeu: a sua falta de identidade. Como o resolver? O futuro da União Europeia depende da capacidade de fazer uma Europa com os europeus, de reforçar a democracia europeia, de travar o aumento do extremismo, a desinformação e o distanciamento entre as pessoas e os seus representantes eleitos, as ameaças ao Estado de direito, que está no cerne da visão de uma União de igualdade, de tolerância e de justiça social. Que Europa queremos? Participemos no debate. Não cruzemos os braços!
Com o apoio do:
* Artigo de Isabel Baltazar publicado no jornal Público no dia 2 de janeiro de 2022
https://www.publico.pt/2022/01/02/mundo/noticia/valores-unem-participacao-cidadaos-projecto-europeu-1990358
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