Esta crónica tinha um destino marcado: ou chegava cedo demais ou tarde demais, dado que ou era publicada em 2 de dezembro ou em 13 de janeiro. Preferi o tarde demais porque – diz-se – falar das coisas antes delas acontecerem pode dar azar.
Vamos, então, nesta época natalícia, refletir um pouco sobre o Natal. Não do que este representa ou representou na história dos povos algarvios, mas sobre um dos elementos mais representativos da festa familiar à maneira antiga: “O Presépio”.
No Natal dos lares portugueses existem três elementos decorativos principais. Dois deles, o pinheiro de ascendência escandinava e o Pai Natal de linhagem normanda são relativamente recentes em Portugal, e um outro de fabrico bastante mais antigo, de chancela católica: “O Presépio”.
O universo consumista foi-se apropriando da figura do Pai Natal e respetiva parafernália, trenós, renas voadoras e, o mais importante, o volumoso saco de prendas que um velho de longas barbas brancas e risada tonitruante traz às costas, para alegria da pequenada e desgaste das carteiras dos maiores.
Aqui – neste interface entre negócio e família – é que se tem desenvolvido o Natal do “mundo ocidental”, mais ligado ao dinheiro que o bêbado ao álcool. Então e o pinheiro? Esse serve para pendurar objetos dourados e vermelhos e servir de suporte aos fios elétricos que piscam e repiscam toda a santa noite. Onde fica então o presépio? Num cantinho. Por baixo do pinheiro ou numa mesinha ao lado, onde, quando as prendas alastram, também serve para ir colocando os papéis e as fitas dos embrulhos.
Porém…, num esforço contra-a-maré dos modernos costumes, por todo o lado se armam presépios nesta época natalícia: grandes, pequenos, com muitas peças ou apenas com as seis figurinhas essenciais, retirando protagonismo ao burrinho e à vaquinha, involuntários anfitriões de tão sagrados personagens.
No Algarve, por exemplo, as autarquias e as igrejas não deixam por mãos alheias a armação dos seus presépios. Há-os apenas com o menino Jesus, imperialmente montado numa pirâmide de degraus de uma depurada pureza e significado. Há-os feitos a partir dos mais diferentes materiais, croché, cortiça, sal, etc… Há-os das mais diferentes dimensões. Apregoa-se o tamanho, a despesa, o número de peças, o peso, o trabalho que tudo aquilo deu. Medem-se e comparam-se uns aos outros, no receio de perderem para a concorrência. São competitivos. Atraem visitantes. As entradas por vezes são pagas. Construir presépios tornou-se numa espécie de negócio.
Seria difícil listar todos os locais públicos do sotavento algarvio – e seguramente do restante Algarve e ainda do barrocal e da serra – onde entidades civis e religiosas erguem presépios tidos como herdeiros de longas e ininterruptas tradições mas, no fundo, pouco interesse desperta nos particulares, porque a grande reunião familiar de dezembro acontece não à volta do nascimento regenerador do divino menino, mas de fartas comezainas e de intermináveis trocas de presentes, revestidas de um indubitável interesse económico para logistas, mas de eficácia duvidosa no que concerne ao fortalecimento dos laços familiares.
Confrontados com a multiplicidade de alternativas, escolhemos visitar o museu de Loulé que expunha um exemplar de presépio serrano, tido como tradicional, e daí até à raia, Vila Real de Santo António e Castro Marim para admirar, do primeiro, o exemplo do big is beautiful, e do segundo a utilização do sal – matéria-prima que é uma das riquezas desse concelho – para a amorosa construção da pequena estrebaria onde segundo a lenda nasceu o Salvador, estrebaria a que nós, sem saber nada de semânticas, chamamos “O Presépio”.
O presépio serrenho é aquele que de modo mais direto entrecruza os festejos pelo nascimento de Jesus com as raízes pagãs que mandavam celebrar o solstício de inverno com o seu telurismo, a sua ligação, à terra, às colheitas, à vida. É de uma grande simplicidade. Usualmente é construído em escadaria com três degraus (antigamente utilizavam-se gavetas de diferentes dimensões voltadas ao contrário e cobertas com belos panos brancos rendados) onde, no degrau mais alto, domina a figura solitária do Jesus Menino em forma de “Cristo Pantocrator”. Pelos degraus espalham-se frutos da terra e sementes germinadas de diversos cereais. Belo e simples, mas detentor de uma semiótica poderosa.
Acontece que, quando chegámos ao Museu para fotografar o dito presépio, o Cristo tinha sido substituído por uma outra figurinha que só muito vagamente lembrava aquela que procurávamos. O António(1) não se conformou com a troca e foi reclamar a devolução imediata da escultura inicial. Calhou bem, porque o proprietário da peça era o senhor Aurélio Cabrita, simpaticíssimo funcionário da Câmara de Loulé, presente na ocasião e que, não lhe sendo possível repristinar o Menino, solicitou uma cópia da fotografia que constava do folheto camarário propriedade da fotógrafa Helga Serôdio, que se prontificou a enviá-la e cuja gentileza aqui agradecemos.
No extremo do Sotavento Algarvio, o presépio de Vila Real de Santo António – que se apresenta como o maior de Portugal, o que não espanta dada a desmesura da área ocupada e o número de figuras, ocupa o Centro Cultural António Aleixo. Utilizaram-se na sua construção toneladas de materiais e meses de trabalho. Os seus criadores produziram centenas de peças, cada uma delas uma história de rigor e de arte. Algumas dessas cenas que contam costumes ou mesteres, estão animadas.
O conjunto foi eletrificado para permitir movimentos e luzes. Impressionante, de facto, mas as parecenças com o humilde e significativo presépio serrenho são absolutamente longínquas. Onde está o mistério dessa noite em que nascem menino e Sol para assinalar mais um ano? Onde está o menino? Onde está sua mãe?
Pois, estão lá, mas escondidos pelo conjunto rústico-urbano que se espalha pelos vales e colinas. É muito visitado, é claro, porque a informação, o “maior de Portugal”, aguça a curiosidade.
Já na fronteira com o nosso vizinho único, em Castro Marim, a cor branca dada pelo sal que reveste o chão do enorme cenário, domina o tradicional presépio da terra, em exibição na Casa do Sal. É didático, e os artistas que o conceberam tiveram atenção aos pormenores étnicos e culturais, recriando um ambiente plausível para instalar a gruta humilde onde o Menino Jesus viu pela primeira vez a luz do dia.
Foi talvez injusta, por demasiado incompleta, esta panorâmica sobre os presépios que resistem no sotavento algarvio, pois muito mais teríamos para dizer dos diversos exibidos em Tavira, em Cortelha, em Altura, em Querença, em Odeleite… e tantos outros. Ficará para o ano que vem…
(1) Mestre Homem Cardoso, fotógrafo e amigo, com quem partilho estas crónicas.