Com exceção de Tavira, que guarda tesouros únicos nas suas variadíssimas igrejas, o Sotavento Algarvio não possui uma obra de arte que obrigue os viajantes a adiarem a satisfação do seu apetite irreprimível pelo Sol e areia e mar e golfe, produtos turísticos em que, quase exclusivamente se tem baseado a oferta estival algarvia nos últimos decénios.
E é pena, porque incrustada na freguesia de Almancil, existe uma pérola, antiga e intocada, toda ela uma jóia perfeita e intemporal. Refiro-me à Igreja de São Lourenço de Almancil citada do seguinte modo por Raúl Proença no velhinho Guia de Portugal:
“A igreja de S. Lourenço de Matos de Almancil é notável pelos belos azulejos que lhe forram as paredes, a abóbada, o zimbório, os altares, historiando a vida do padroeiro em quadros de boa cor e composição […) Na sacristia (arcazes com ferros em bronze) o revestimento cerâmico é formado por grandes albarradas floridas.”(1)
É efetivamente notável a igrejinha que é o objeto desta crónica. Não atrai pelo tamanho ou pela riqueza dos seus ornatos mas pela completude e perfeição. Um dos mentores desta nossa viagem(2) – precisamente o Nobel José Saramago – foi muito naturalmente por ela seduzido. E é curioso que não entra em pormenores, talvez por ter tido que apreciar uma obra de arte no meio de um funeral (o que foi o caso, segundo o próprio descreve) o que não é uma circunstância favorável, Saramago, como nós, fala em pedras preciosas “a preciosa jóia que toda a igreja é”, e não se mete em detalhes(3) mas deixa duas dicas: o nome Policarpo de Oliveira Bernardes e a expressão (muito dele, aliás), “obras da vida”. Pois então, com a implícita autorização de Saramago, falemos um pouco desse nome “Policarpo” e dessas “obras da vida”.
Policarpo de Oliveira Bernardes é um nome incontornável da azulejaria barroca portuguesa da primeira metade do século XVIII. Foi um dos discípulos de seu pai, António, e, em conjunto, assinaram a mais impressionante coleção de azulejos decorativos representadas de Norte a Sul de Portugal, nas ilhas atlânticas e no Brasil. Não vou massacrar os meus leitores com a lista de monumentos em que estes mestres deixaram a sua marca artística, pois qualquer digressão rápida pela internet os informará melhor do que eu poderia. Prefiro reservar o tempo para vos falar de algumas curiosidades relacionadas com este monumento.
Primeira curiosidade: a igreja de São Lourenço dos Matos, ao contrário de tantas outras no Algarve, não foi tocada pela tragédia do terramoto de 1755 (apenas caíram cinco azulejos da abóbada!…) o que permite que hoje em dia seja possível admirar a mesmíssima decoração azulejar que os fiéis oitocentistas podiam contemplar.
Segunda curiosidade: o contrato notarial para o revestimento azulejar da igreja foi firmado no dia 16 de novembro de 1729 e determinava que os azulejos estivessem todos assentes na primavera seguinte, ou seja, no ano de 1730, o que de facto aconteceu. Extraordinário desempenho! Ou, talvez, e em minha opinião o mais provável, é que tivesse havido contactos prévios com as fábricas de Lisboa e o trabalho artístico tivesse começado muito antes do respetivo contrato ter sido ajustado.
Terceira curiosidade: a construção e decoração do edifício foi paga pelas esmolas dos fiéis e não por dinheiros públicos. Na verdade, desde 1772, ano em que São Lourenço ofereceu à região uma chuva milagrosa que pôs termo a uma desesperante e longa seca, as populações através das suas oferendas decidiram substituir a decrépita Ermida de São Lourenço dos Matos por uma igreja mais consentânea com um Santo Milagreiro de tamanho gabarito. Oito anos depois do milagre surgia assim no interior algarvio a “jóia” que Saramago refere na sua Viagem a Portugal. Sim. Na verdade não são só as decorações azulejares que maravilham o viajante, mas também a elegantíssima talha dourada que de uma forma exemplar enquadra as cenas da vida do Santo. Mas já lá iremos.
Quarta curiosidade: Policarpo de Oliveira Bernardes não se deslocou nem a Almancil nem, aliás, ao Algarve o que, de acordo com o parecer do grande historiador de azulejaria barroca portuguesa – o Prof. José Meco – era costume pois, na verdade, os mestres azulejadores eram simultaneamente mestres e promotores da obra. Competia-lhes fazer o desenho da construção e respetiva decoração (o que incluía tirar medidas milimetricamente exatas da área a decorar), eram também os responsáveis pela escolha dos artistas, pelo transporte até ao local e, finalmente, pela sua colocação. Como era possível que tudo batesse certo?! Queridos leitores, se nunca visitarem esta igreja façam-no agora e analisem-no (também) do ponto de vista da eficiência e da eficácia demonstrada pelos nossos antepassados. Que lição extraordinária para os dias de hoje. Podemos até concluir que um português é capaz de tudo, até de criar e oferecer, por mera gratidão, uma jóia imperecível a um Santo Protetor.
Quinta curiosidade: embora raramente este tipo de trabalho surja assinado pelo autor, neste caso a assinatura do artista, “Policarpo Oliveira Bernardes”, aparece no rodapé de uma das colunas decorativas. Qualquer dúvida sobre a autoria do trabalho fica assim desfeita e esclarecida.
Temos falado do “azul”, mas falta falar do “ouro”, ou seja, do magnífico retábulo e da talha que decora os lintéis e o embasamento da grande abóboda onde o Santo é coroado em glória pelas autoridades divinas.
Na verdade, pensa-se que a talha da igreja foi concebida e executada por volta de 1735 pelo mestre entalhador Manuel Martins, natural de Faro, e que o douramento da madeira terá sido contratado meia dúzia de anos depois a dois reputados pintores algarvios. Seja como for, o trabalho final aí está, disponível para o nosso olhar.
Last but not the least, convém falar ainda da sacristia com uma decoração azulejar de motivos vegetalistas e, principalmente, de um precioso arcaz barroco, também ele saído da mão do mesmo Manuel Martins.
A admirável obra sobreviveu aos séculos, mas é justo referir a grande campanha de requalificação levada a cabo nos anos sessenta, que nos permite nos dias de hoje encantarmo-nos com a “preciosa jóia” que tanto maravilhou José Saramago na sua viagem ao nosso Portugal.
(1) Guia de Portugal, Estremadura, Alentejo, Algarve, edição da Biblioteca Nacional, Lisboa, 1927, p. 230.
(2) Na crónica de 5 de Novembro de 2021 está muito bem explicada esta questão dos guias espirituais que nós – eu e o António Homem Cardoso – seguimos de perto nesta longa digressão algarvia.
(3) José Saramago, Viagem a Portugal, Editorial Caminho, 2ª ed., Lisboa, 1985, p. 227: “E tão bem quanto permitia o melindre da situação, olhar os famosos azulejos do Policarpo de Oliveira Bernardes, a cúpula magnífica, a preciosa jóia que toda a igreja é […]. O viajante pôde maravilhar-se diante destas obras da vida.”