O que nos terá dado para escrever (e fotografar) sobre locais tão afastados de uma estação ferroviária, incumprindo gravemente o nosso plano inicial que era falar exclusivamente de locais algarvios facilmente acessíveis usando apenas o comboio? O que nos terá atraído em locais como Vilamoura, Vale do Lobo, Quinta do Lago…?
O fator desencadeante surgiu numa desafogada praça em Vilamoura, quando nos deparámos com uma esguia estátua toda em mármore branco, assente sobre um plano de água circular. Quem é? Quem não é? Fomos investigar. A estátua representava Artur Cupertino de Miranda. Esse nome fez soar uns vagos sininhos na minha cabeça: antigo regime… banca…
Felizmente que o António Homem Cardoso para além de fotógrafo é um repositório inesgotável de informações úteis pelo que, após muita conversa e várias idas à internet estou em condições de resumir em duas linhas uma história multicentenária.
Desde a época romana ou anterior (fenícia?) e até 1297, data do foral outorgado por D. Dinis, Quarteira foi uma comunidade piscatória. Depois foi crescendo, crescendo, até se tornar numa cidade, uma das mais caóticas e deselegantes do Algarve, cujo destino ficou refém de uma mão cheia de patos bravos esfomeados de lucros.
O caso é que a área hoje em dia ocupada por Vilamoura e pela atual Quinta do Lago fazia parte, nos anos 60 do século passado do morgadio de Quarteira: 1700 hectares de boa terra, atravessada por uma ribeira e com uma enorme frente de mar. Pois aqui é que entra o banqueiro Cupertino de Miranda: em meados dos anos sessenta, levado por um sonho antigo decide comprar as terras do morgadio e iniciar uma urbanização de qualidade num Algarve desalinhado dos novos tempos, Meu lindo preguiçoso adormecido ao sol, como dizia o poeta olhanense João Lúcio que encontrámos numa crónica lá para trás.
É claro que muita coisa se entrepôs entre o sonho e a realidade: compras, vendas, alteração de proprietário e também mudanças políticas que inviabilizaram temporariamente o grande projecto de transformar esses terrenos num soberbo empreendimento articulado à volta de uma excelente marina, um bom casino e uma urbanização com regras claramente definidas. O belo sonho de Cupertino de Miranda não foi concretizado na sua totalidade pelo próprio mas por outros, o que não retira brilho ao imenso projeto.
Seria profundamente injusto não falar também do empresário André Jordan que soube, apesar das tormentosas marés da história socioeconómica portuguesa dos anos setenta, conceber e realizar em 650 hectares contíguos ao antigo morgadio da Quarteira o empreendimento mais caro e exclusivo de Portugal, a Quinta do Lago. No que se refere a Vilamoura, foi também Jordan que se associou à Lusotur – empresa que geria o empreendimento – e que o impulsionou com uma visão estratégica. Hoje em dia Vilamoura continua a apresentar um crescimento estruturado, baseado numa logística de qualidade e numa harmonia que até ao momento não foi desfeita. Como exemplo de perigos sempre presentes, veja-se o projeto – felizmente abandonado – de uma cidade lacustre a Oeste do morgadio, que obrigaria, entre outros impedimentos ambientais à canalização da ribeira da Quarteira!
Mas a ocupação deste vasto espaço não ficaria completa sem uma menção a Vale do Lobo, uma área de 450 hectares entalada entre a Quinta do Lago e a Quarteira que se inspirou no modelo de “empreendimento social para os ricos”(1), testado por Jordan na Quinta do Lago.
Pois é exatamente nesta questão ética – a do acesso ao luxo caro, confortável e exclusivo para uns poucos e a abrigos sobrelotados de medíocre qualidade para muitos outros – que reside a minha reflexão, ou seja, resvalei nesta crónica para a crítica social e agora tenho que me desenvencilhar como puder.
– António – pergunto eu – não achas um bocado ultrajante esta diferença entre quem tem muito e quem tem tão pouco? Entre os ricaços refastelados à larga na Quinta do Lago e as multidões que competem por umas semanas num T2 com vista para o parqueamento do quarteirão onde vão tentar encaixar a família?
O António não pareceu surpreendido com a minha pergunta, desconfiei até que não me tivesse ouvido por estar distraído com as suas máquinas, mas não, ele tinha ouvido muito bem, só que não lhe convinha entrar numa polémica sem solução à vista
– Ricos e pobres – respondeu ele finalmente, enquanto delicadamente sacudia o pó de uma das suas objetivas – Reis e escravos. Honestos e ladrões. Espertos e estúpidos. Sortudos e azarentos. São as polaridades da vida, meu caro. Luz e Sombra, etc, etc. É a dinâmica da existência. É dessa tensão que se alimenta o “progresso”, que é uma palavra que tantas vezes mascara a desigualdade.
– Está certo, António, mas é para lutar contra isso, contra essas injustiças que os estados sociais existem. Talvez tenhas razão, mas o facto é que no nosso País esse Estado, se existe, está muito bem escondido. Eu desejaria ardentemente que no mundo houvesse apenas ricos mas isso é um sonho irrealizável.
– Cá continuamos desde os tempos do Senhor Dom Afonso I, a ter nobres e servos; ricos e pobres – responde o António – mas também deixa que te diga: o homem que busca a felicidade, tanto a pode encontrar numa vivenda da Quinta do Lago como num T0 em Quarteira. Olha, o nosso Manuel da Fonseca nos anos sessenta bem que encontrou um pedacinho dessa felicidade nas quentes areias de Quarteira, como ele escreveu: Estendido na areia, não penso em mais nada. Nada. […] Sob o sol, a irradiante inquietação das cores vibra, desde o vermelho-claro das distantes arribas, a nascente, até ao oiro desmaiado do areal.(2)
– Hum… – resmungo eu – apesar de tudo, parece-me mais provável ser-se feliz na abundância do que na pobreza.
– Estás a extremar as posições. Ocupar um T0 em Quarteira não é pobreza. Está muito longe disso. Significa até alguma prosperidade. É uma malta de meio-termo, que está entre os poucos que têm muito e os muitos que têm quase nada e que vai alimentando este nosso querido Portugal.
Irritaram-me bastante estas lições de política social. Para além dessa questão da felicidade humana estar ou não na razão direta da conta bancária, outra questão talvez mais digna bailava no meu espírito. Tinha a ver com a propriedade de raiz da terra portuguesa. Após termos vendido as partes mais apetecíveis do Algarve a não nacionais o que nos restará: o Barrocal? As Serras?
Perdoem-me caros leitores. Resvalei mesmo para terrenos movediços. Ora vamos lá mas é prepararmo-nos para a primavera que aí vem e para o verão que também há-de chegar.
– Totalmente de acordo – diz o sábio António – gozemos o Sol e o mar. Estarão lá para nós. Sempre!
(1) A frase irónica é do próprio André Jordan e significa que, embora os ricos também precisem de descanso, são obrigados a pagar por ele um preço condizente.
(2) Manuel da Fonseca, Crónicas Algarvias, Editorial Caminho, 2ª ed., Lisboa,1986, p. 163