Após a crónica anterior em que visitámos Loulé à vol d’oiseau, era suposto termos iniciado a nossa rota para Barlavento deixando para trás todas as estações e apeadeiros ferroviários da banda do Sotavento, que até ao momento temos tomado como fio condutor das nossas peregrinações algarvianas. Perdoar-me-ão os leitores, mas estou tentado em fazer uma última menção a Vila Real de Santo António pois, de todas as povoações, vilas e cidades que visitámos, esta foi a única que deve a sua existência à vontade soberana de um único homem – Sebastião José de Carvalho e Melo, Conde de Oeiras e Marquês de Pombal – que impôs ao fluxo da história uma férrea determinação com resultados que ainda hoje deslumbram, sobretudo do ponto de vista da eficiência (e tão necessitados estamos nós em Portugal de eficiências similares…).
Vila Real foi, portanto, a expressão de um pensamento e de uma vontade de resgatar Portugal através do desenvolvimento da economia, principal garante do bem estar das pessoas. A Vila deveu a sua pujança económica a este pensamento original que permitiu constituir uma massa crítica nas áreas das pescas e indústrias associadas. Terminados os ciclos da sardinha e do atum, os vila-realenses viram-se confrontados com um vazio que só seria colmatado com o crescimento do turismo que na atualidade sustenta este e muitos outros concelhos.
Há uma “pré-história” de Vila Real relacionada com um povoado, Santo António de Arenilha, situada na foz do rio Guadiana, uma comunidade de pescadores. Foi fundada nos primórdios do séc. XVI mas desapareceu num cataclismo natural uns cem anos mais tarde.
Nos finais do século XVIII o Marquês de Pombal mandou erigir uma nova povoação, um pouco a Norte da antiga Arenilha. A construção enquadrava-se na reorganização das “Reais Pescarias” no Algarve – concretizada no reinado de D. José – que se insere num esforço planeado de substituição da importação de géneros pela sua produção nacional. Acresce que em vários lugares do Algarve mas especialmente na zona de Monte Gordo, se instalara um concorrido centro piscatório utilizado sobretudo por estrangeiros, pelo qual se esvaía – em impostos por cobrar – uma quantidade enorme de recursos. Talvez o primeiro sinal da intenção do Marquês em obviar a esta sangria do Erário Real, tenha sido a criação em janeiro de 1773 da Companhia Geral das Pescarias Reais do Reino do Algarve. Nesse mesmo ano manda construir a Vila e um mês depois (janeiro de 1774) envia uma planta da nova Vila executada pela Casa do Risco (responsável pela reconstrução de Lisboa) sob a orientação do arquiteto Reinaldo Manuel dos Santos. A primeira pedra é lançada em 17 de março de 1774 e a Vila é inaugurada dois anos depois, no dia 13 de maio.
Construção de uma cidade em pouco mais de dois anos!? É obra.
E não era uma cidade qualquer. Era na verdade uma fábrica de fazer dinheiro. Como diz Gonçalves (2009)(1): “Vila Real de Santo António é, pelo que se sabe, a primeira fundação urbana criada para desempenhar uma função económica específica, ou seja, terá sido o primeiro caso pensado e concretizado daquilo que, nos dias de hoje, se designaria como cidade-fábrica.”
Temos então que a frontaria palaciana da Baixa Mar esconde um esmerado saber fazer, quer no que respeita aos aspectos construtivos, quer no que concerne às funcionalidades instaladas.
A construção relâmpago da Vila terá sido também uma manifestação de poderio em relação a Espanha. Na verdade, o Guadiana é uma fronteira natural que tinha nas fortalezas de Castro Marim o seu principal núcleo de defesa. A nova Vila não iria acrescentar nada em termos defensivos. Aliás, a estratégia construtiva, o plano urbano que lhe foi determinado, apresentava ao país vizinho uma frente indefesa em termos militares mas prestigiante em termos arquitetónicos.
Se o coração da Vila Real era a atual Praça Marquês de Pombal (antiga Praça Real), a sua cabeça era a sequência de edifícios paralelos ao Guadiana, a Rua da Rainha (atual Avenida da República mas conhecida pelos locais como Baixa-Mar). Se sacarmos da régua e do esquadro, constatamos que o núcleo inicial tinha seis ruas perpendiculares ao rio e cinco paralelas a este. A frente da Rua da Rainha oferecia face a Espanha uma frente de quase meio quilómetro, que do outro lado do rio se deveria assemelhar à frontaria de um vasto palácio, provocando assim o grande vizinho com a nossa (suposta) grandeza.
“Planeada como um todo orgânico, estruturado em forma regular, Vila Real de Santo António tem uma fachada composta de 6 blocos de 240 palmos e um de 250 palmos correspondentes aos 7 quarteirões da primeira fila, separados por 6 ruas de 40 palmos, que no seu conjunto se apresenta como se fora a fachada de um palácio.”(2)
Esta iniciativa – única na história – tinha muito de bluf, pois na verdade ambos os países estavam mergulhados numa imensa crise económica(3) e o que queriam era arrecadar para si os proveitos das pescas e da agricultura do Sotavento Algarvio, que até essa altura se tinham escapado das mãos do Marquês como grãos de areia.
Temos então a cabeça imponente de um grande corpo. Onde estava o coração que o animava? Pois na Praça, já o dissemos, definida por quatro torreões ortogonais (ou não seja o quatro o número do material) e pelo obelisco, um centro que irradia luz, conhecimento, poder esclarecido ou, como reza a placa:
“El-Rei D. José I, Augusto Invicto Pio, […]Restaurador […] Do Commercio da Agricultura. Reparador Da Glória e Felicidade Pública. […]”.
No topo do obelisco temos a cruz e sob ela a coroa real que repousa sobre a esfera armilar, símbolo do império, tudo assente numa coluna onde se enrolam em espiral ascendente os caules de pequenas flores de três pétalas. Não consigo deixar de associar essas plantas que serpenteiam ao redor da coluna, com o caduceu e as duas serpentes que representam a polaridade universal. Essa mesma polaridade é igualmente visível nas cores preta e branca do pavimento radiante da Praça. Esses raios – para além da sua evidente conotação maçónica – representam o regime político do absolutismo esclarecido, pois na verdade, relacionar o poder absoluto dos monarcas com o espírito das Luzes era a moda na Europa daquela época, moda em que se inseria a visão do Marquês de Pombal, artífice musculado de um projecto nacional de desenvolvimento e de progresso que – helàs – poucos anos haveria de durar.
(1) GONÇALVES, Adelino, “Vila Real de Santo António, Planeamento de pormenor e salvaguarda em desenvolvimento” in Monumentos 30: Vila Real de Santo António, A “Cidade Ideal”, Dezembro 2009.
(2) CORREIA, 1984, p. 145
(3) Havia-se esgotado há muito o ouro do Brasil. No tempo do Senhor D. João V o Convento de Mafra fora o último sobressalto de grandeza.