Numa conversa íntima, o autor louletano revela as suas motivações, a transformação pessoal que o guiou e a relação entre a sua poesia e as outras formas de arte que explora. Com uma visão singular sobre o papel da poesia na sociedade contemporânea, Miguel oferece um olhar autêntico e provocador sobre o universo criativo e as complexidades da existência.
Miguel, o seu novo livro de poesia, “Rastilho”, marca a sua estreia na literatura publicada. Como descreveria a transformação pessoal que o levou a sentir-se preparado para finalmente partilhar a sua poesia com o público?
Não foi tanto uma transformação como a vontade de regressar a um espaço onde tivesse vista para a verdade. A verdade, quando deixada à sorte, apodrece como uma ferida aberta. É sentimental e intransmissível. Projetá-la nos outros é deixá-la à sorte, além de fútil. Por isso, as pessoas entendem-se por meio de símbolos e subterfúgios. É daí que vêm o desespero, a solidão. Mas quando escrevo poesia, estou a extrair as palavras de uma fonte interior e límpida, estou a reacender sentimentos pela lente da beleza. De resto, sempre escrevi, desde os tempos de escola. O que acontece é que eu achava o que escrevia uma merda. Tão simples quanto isso. Agora é diferente. Escrevo por mim e para mim. Não penso em mais nada. O público é um dano colateral que advém da circunstância de se querer escrever, e apenas querer escrever. Nestes casos, a confiança leva-nos a publicar. Mas eu não tenho um “público”. Este é um livro de poemas, o primeiro, não há, portanto, ilusões… Público têm-no homens de fato como o José Rodrigues dos Santos. Fiquemos assim.
A palavra “rastilho” evoca a ideia de algo prestes a explodir ou desencadear um evento. O que pretende simbolizar com este título no contexto dos seus poemas e na forma como vê a criação poética?
Para ser franco, não tenho é paciência para títulos longos e teatrais. São uma porta aberta ao arrependimento. “Rastilho” é uma palavra direta, tem uma tensão associada. Também nos meus poemas tudo parece encaminhar-se para um rebentamento. Pareceu-me adequado e não estou arrependido. O meu próximo livro seguirá o mesmo caminho, claro.
A música eletrónica que cria sob o pseudónimo Holldën tem um contraste marcante com a poesia tradicional. De que forma essas duas formas de expressão influenciam-se mutuamente na sua criatividade?
Sobre isso, direi apenas que deixei o mundo da música e nunca mais olhei para trás. Desde jovem que sempre quis escrever. Mas para se ser escritor aos 25 anos é preciso ter algo para dizer, ou uma forma muito especial de dizer as pequenas coisas. E eu não tinha nem isto, nem aquilo. A música, durante uns tempos, preencheu esse vácuo, amadureceu processos, temperou-me o entusiasmo.
Sempre me fascinou mais o embalo criativo do que a performance. Mas há, entre a música e a poesia, traços comuns, como a plasticidade mental, o sonho, o ritmo, a construção textural. Não há duas formas de arte que sejam desconhecidas uma da outra.
O processo criativo da poesia, como descreveu anteriormente, envolve paciência e observação. Poderia aprofundar como equilibra a espera por inspiração com a urgência de expressar sentimentos ou ideias que surgem de repente?
Desde logo, não há nenhum coche puxado por seres de luz que venha todos os dias despejar-nos versos divinos à porta. É um trabalho exaustivo, demorado e granular. Depois, tem um custo emocional elevado. Não conheço outro género literário que exija isto. É um ato de fragilização permanente. Todos os dias temos que aceder ao conteúdo íntimo de um peito que está em constante deslocação, sem o qual não se faz poesia. E, muitas vezes, isto requer horas de preparação e persistência, antes de haver visibilidade. Estas coisas não se ensinam. Não há cursos para isto. Uma pessoa ou tem esta sensibilidade ou não tem. Depois, faz as suas escolhas de vida.
Na era das redes sociais, mencionou uma preocupação com a qualidade da poesia divulgada nessas plataformas. Como vê o papel da internet na democratização da arte, e como os autores podem manter a qualidade num mar de conteúdos?
Em teoria, ter acesso a tudo à distância de um clique parece uma ótima ideia. Só agora começamos a perceber as reais consequências desse desvario.
Não nos esqueçamos que as redes sociais são criadas por pessoas profundamente desemparelhadas da experiência humana. O resultado não poderia ser outro.
Quando desviamos a arte do seu habitat natural para o mundo virtual, estamos a entrar numa máquina de trituração dos sentidos. Há uma enorme saturação que vai em contraciclo com os ritmos da empatia. A própria arte pensada para estes meios já vem formatada nesses moldes. Mal chega a tocar a superfície do seu potencial. Mas, como ferramenta de promoção literária, tem as suas vantagens. O que não diverge da realidade física dos livros, com a qual as pessoas mantêm uma ligação romântica. Eu não me escuso a brincar com aquilo e tenho, de facto, chegado mais depressa a novos leitores.
Ao longo da história, a poesia tem sido uma poderosa ferramenta de resistência política e social. Qual é o papel que acredita que a poesia pode ou deve ter na sociedade contemporânea, particularmente em tempos de polarização política e social?
Não misturo uma coisa com a outra. A poesia já teve esse papel noutros tempos. Mas esse tipo de poesia nunca me interessou, é contranatura. A poesia cumpre o seu desígnio se agitar as águas profundas da beleza, do amor, da morte, do medo — que é algo de que a humanidade carece nos dias de hoje. Se virem um homem em sofrimento, não lhe descrevam os sintomas, dêem-lhe esperança.
Tendo passado por várias formas de arte, desde a música à tradução, qual é o seu conselho para os jovens artistas que procuram navegar por múltiplas disciplinas criativas e, ao mesmo tempo, encontrar a sua própria voz?
Não há uma resposta certa a essa pergunta. Diferentes coisas resultam em diferentes pessoas. No meu caso, o tempo dotou-me de gostos próprios e tive a sorte de descobrir cedo aquilo que me punha os joelhos a tremer. Depois, é preciso ter-se uma fome insaciável e importarmo-nos pouco com o que os outros pensam. Quem cria a pensar nos outros está a jogar contra si próprio, e contra o único bem valioso que tem para mostrar, que é a verdade unipessoal. A arte, no fundo, é olhar para dentro sem medo, para a luz e para a sombra.
Leia também: O azeite é barato ao lado deste produto. Conheça o “novo ouro líquido” que se vende a 10.000€/kg
E ainda: Miguel Duarte e a verdade descomprometida de “Rastilho” | Por Henrique Dias Freire