Uma cigarra cantarolava feliz e relaxada, uma formiga passava por perto, trabalhando arduamente para ter comida para o inverno. O rato que ia ser comido por um leão, mas suplicando pela sua vida, prometeu ao grande animal que caso o deixasse partir iria um dia devolver-lhe um gesto de igual bondade. No final da história o rato veio a salvar o leão. A tartaruga voou bem alto, transportada por dois patos, segurando um pau na boca ao mesmo tempo que cada um dos patos segurava a ponta de um ramo. A tartaruga decidiu, entusiasmada, autoelogiar-se como sendo extraordinária, caindo do céu logo após abrir a sua boca.
E, ainda, a história do sapo e do escorpião, que recentemente relembrei num episódio de After Life, uma série britânica de excelente humor amargurado, escrita e produzida por Ricky Gervais. No banco de jardim, a personagem Anne conta a Tony a história na qual um escorpião querendo passar um rio pede auxílio a um sapo que lá se encontrava. O sapo, ainda que receando que o escorpião o picasse, decidiu aceitar o pedido de auxílio. Durante a travessia o escorpião espetou o seu ferrão no sapo, levando os dois na corrente para a morte certa de ambos. Aí o sapo pergunta ao escorpião a razão do seu ato e o escorpião responde que não resistiu porque era da sua natureza. A cena terminaria com a explicação da moral deste conto: mesmo que seja contra os seus próprios interesses, uma pessoa violenta magoará sempre os outros, porque não pode negar a sua natureza.
Estas histórias e todas as demais que não enumerei, mas li durante a minha infância, chamam-se fábulas, como bem sabem. As fábulas de Esopo que La Fontaine recuperou para chegar até aos nossos dias. Mas muitos outros nomes de diferentes nações e culturas do nosso mundo têm as suas fábulas. A Ásia, por exemplo, é um lugar onde se proliferam estes contos populares, de geração em geração, que sobrevivem conjuntamente com os provérbios, alegorias, lendas e parábolas.
As fábulas, quer em prosa quer em verso, têm as características que sempre me inspiraram na formação da minha personalidade. Daí o carinho com que relembro, de tempos a tempos, alguns dos diversos contos que aprendi na minha infância e nunca mais me esqueci. São histórias simples, usando animais que falam uns com os outros, que tomam decisões e, no final, sentem as consequências dessas mesmas resoluções.
O lado fantástico de crescer a ler ou ouvir dos mais velhos as histórias simples, como exemplo de uma cigarra que descansava e uma formiga que trabalhava, para no final me explicarem que uma “cantava noite e dia, a toda a hora.” E a outra terminava dizendo “Cantavas? Pois dança agora!”. Eram mensagens que faziam qualquer criança ter mais consciência do sentido moral das coisas simples da vida, não lhes impondo o caminho de imediato, mas dando uma história para elas refletirem e decidirem qual o caminho que pretendiam seguir.
Nos tempos atuais, as tecnologias aumentam a capacidade de todos nós, incluindo as crianças, de aceder à informação e a um número quase infinito de conteúdos publicados digitalmente na internet.
Em Portugal as novas tecnologias estão a entrar no processo de educação das crianças em idades cada vez mais precoces. Os programas públicos de inovação e promoção no uso de tecnologias pelas crianças, como é exemplo dos kits digitais distribuídos por muitos estudantes, é uma demonstração clara que agora as crianças terão sempre um acesso cada vez mais facilitado às novas tecnologias durante a sua fase de aprendizagem escolar.
Mas a modernidade não tem, nem deve, necessariamente apagar o valor de aprendermos do conhecimento antigo que ainda é preservado nos nossos dias. Há uma certa magia nas histórias dos antigos que sempre foram passadas de geração em geração e que nos permitem ser mais sábios e conscientes em períodos mais turbulentos da nossa vida e das nossas relações interpessoais. São histórias que nos ficam na cabeça e orientam a nossa perspicácia na tomada das melhores decisões da nossa vida.
As fábulas de La Fontaine (algumas traduzidas pelo nosso grande Manuel Maria Barbosa du Bocage) surgiram na minha infância e fazem ainda parte da minha vida, utilizando-as sempre que preciso de alcançar respostas, mesmo para os dilemas mais difíceis de resolver.
Porque ainda há na nossa vida decisões difíceis que dependem exclusivamente da nossa sábia avaliação e que o ChatGTP não consegue de todo resolver.
Turbulências V escrito por João Fernandes Moreira, advogado
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